Reportagem: Emília Prado Edição: Luane Ferraz
Escrito entre 1955 e 1956, Morte e Vida Severina se tornou a obra mais conhecida do poeta recifense João Cabral de Melo Neto, nascido há 100 anos, em 9 de janeiro de 1920. Modernista da Geração de 1945, João Cabral abordava elementos simples para falar do país, como nos poemas Tecendo a manhã e A educação pela pedra, onde explora características da vida no Sertão. Mas, sem dúvidas, é em Morte e Vida que ele constrói a sua obra com maior abrangência em retrato e crítica social da região. Apesar da riqueza em detalhes e linguagem típica que apresenta, o poeta não experimentou em sua vida cenário parecido. Passou a maior parte da infância nos municípios de Moreno e São Lourenço da Mata, época na qual vivenciou algo mais próximo à vida rural, mas ainda incomparável ao quadro árido de seu poema. Aos 26 anos se torna diplomata, cargo que o faz frequentar as capitais mais desenvolvidas do país na época e morar em cidades da Europa. Mesmo com o trabalho, tinha tempo para escrever e publicar seus livros no Brasil, mas só volta a se estabelecer no país em 1987, no Rio de Janeiro, onde faleceu em 1999.
Morte e Vida Severina é a narrativa de um retirante sertanejo que, em busca de uma vida melhor e mais longa, inicia sua trajetória à capital pernambucana e acaba conhecendo novas mazelas ao longo do caminho e também no destino final. Trabalhadores como ele, mostram que a dureza da vida se dá tanto na terra seca como em chão de lama do manguezal. E Severino, sua identidade desde o início explicada e remexida, deixa de ser nome e se torna adjetivo. “Só morte tem encontrado quem pensava encontrar vida e o pouco que não foi morte foi de vida Severina (aquela vida que é menos vivida que defendida, e é ainda mais Severina para o homem que retira)”.
A migração de zona rural para zona urbana não ficou só nos relatos da década de 1950. Quem sobrevive da terra hoje ainda sai em busca de futuro melhor, seja o do dia seguinte, pela fome, seja o distante, pelo sonho. Dos autos não contados, trazemos a seguir dois dos inúmeros que já foram e que serão. Vidas Severinas que ora se encontram, ora se emancipam dos passos que deu o personagem do poema.
Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar alguns roçado da cinza. Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra.
JOELMA A primeira vez que Joelma Carla entrou na Assembleia Legislativa de Pernambuco foi aos 15 anos em um passeio do colégio, quando nem imaginava que seria este o seu atual local de trabalho, aos 21. Joelma é codeputada no mandato das Juntas (PSOL), composta por mais quatro mulheres, é estudante de Licenciatura em Letras na UFRPE e de Técnico em Biblioteconomia.
Nasceu em Bom Jardim, no Agreste do estado, e lá morou até os sete anos com os pais e os quatro irmãos. Os pais de Joelma sempre foram agricultores, mas nunca vendiam o que colhiam, era tudo para alimentar a família. O terreno onde plantavam era alugado de um caseiro, funcionário do dono da terra, que morava em Recife, e a renda semanal do trabalho na roça era de 40 reais.
Desde os cinco anos, os irmãos ajudavam o pai na plantação no período da tarde, depois que voltavam da escola. As refeições eram complementadas pelos peixes de rio pescados na fluente que passava perto do sítio, e que em 2005 começou a secar. “O rio era só lama e a terra não vingava mais. O meu pai com muita pressa disse que a gente ia se mudar. O principal motivo para o trabalhador da zona rural ainda migrar pra zona urbana é a fome. Porque o que mantém a pessoa dentro de um território é, no mínimo, alimentação e água. Quando você não tem comida para colocar na boca dos seus filhos e nem água para matar a sede, não tem mais como viver nesse lugar.”
O IBGE não colhe dados sobre a fome no Brasil desde 2013, ano da última pesquisa, que apontou que 3,6% da população tem insegurança alimentar grave, o que correspondia na época a 7,2 milhões de pessoas. De acordo com o órgão, insegurança alimentar grave é “passar pela privação de alimentos, podendo chegar à sua expressão mais grave, a fome”. Em julho de 2019, o presidente Jair Bolsonaro declarou em coletiva a jornalistas que “falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”, e ainda, “Passa-se mal, não se come bem, aí eu concordo. Agora passar fome, não. Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas com o físico esquelético como se vê em outros países pelo mundo”.
Em Morte e Vida, Severino antes de se apresentar como aquele que emigra, realça de início seu sentimento de pertença e a insistência que teve com a terra. “Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar alguns roçado da cinza”. No poema de João Cabral, a migração não é sonho, é meio de sobrevivência, a última tentativa, assim como foi para a família de Joelma.
Os dois primeiros anos da família de Joelma na zona urbana de Surubim foram os mais difíceis. “A água para beber era da torneira, porque não tinha dinheiro para comprar. A gente passou esses primeiros anos comendo quarenta, um tipo de cuscuz que se faz no interior, e peixe seco, que a gente deixava uma semana no sol pra poder comer”, lembra. Para manter a família, Seu João Alves comprou uma carroça e ficava na feira esperando as pessoas com muitas sacolas para levar as compras até suas casas. O primeiro dia na função rendeu o mesmo que uma semana trabalhando na roça em Bom Jardim, e ele ainda voltou com a feira de casa.
Quando chegaram em Surubim, o município tinha fama de ser perigoso por ter muitos traficantes e Joelma e os irmãos não fizeram amigos na comunidade por recomendação dos pais. “Sair da zona rural e ir para uma comunidade periférica foi difícil, porque a gente deixa território, deixa os amigos, deixa tudo. Até hoje eu digo que se pudesse escolher voltar pra zona rural tendo políticas públicas que garantissem o bem viver da população, eu queria voltar com a minha família. Eu digo que foi uma retirada, a gente não saiu por escolha, a gente saiu porque não tinha mais como viver”.
Pensei que seguindo o rio eu jamais me perderia: ele é o caminho mais certo, de todos o melhor guia. Mas como segui-lo agora que interrompeu a descida?
Todo o entendimento de direitos que a codeputada adquiriu na adolescência veio da educação em Surubim. Sua primeira luta política foi pela reforma da escola, junto com outros estudantes. As turmas passaram dois anos assistindo aulas em garagens de igrejas da comunidade porque a reforma iniciada no prédio escolar tinha sido paralisada.
“Em 2016 eu recebi um convite para construir a política pública de juventude dentro do Instituto de Protagonismo Juvenil, e aí que eu me encontro como protagonista da minha luta de jovem de militante do interior”, explica Joelma, que aos 18 anos se candidatou para vereadora do município de Surubim, com a proposta de mostrar para a juventude da cidade que é preciso de renovação política. “Os jovens não sentiam a capacidade de ocupar esse espaço de poder e decisão, então esse era o meu discurso”, ressalta. Unindo vivência da vida no campo a estudo das políticas pública na região, Joelma acredita que a maior problemática das zonas rurais ainda está relacionada aos longos períodos de seca, afetando diretamente aqueles que se alimentam e vendem o que plantam, e a relação da nova geração com terra, visto que há uma clara falta de estrutura do Estado em dar condição para essa juventude rural se desenvolver, sem precisar optar por uma migração. Apesar de Universidades Públicas, como a UFRPE, terem polos em cidades do interior, como Serra Talhada, a não presença de políticas pública ainda é latente e também refletida, inclusive, dentro das própria famílias da região, que quando podem sonhar com seus filhos nas universidades, pedem que os mesmos “procurem estudo” e se especializem fora da área rural. “O Estado precisa dar condição para que sair do campo seja uma escolha, e não uma obrigação.” Joelma continua morando em Surubim, se desloca para Recife e outras cidades de acordo com as demandas da sua agenda política. A origem e vida em Bom Jardim, apesar de ocupar só os anos iniciais de sua vida, foi o que lhe possibilitou ter uma noção mais diversa das pessoas e lugares, seus problemas e possíveis soluções. “Eu nunca imaginei que estaria onde estou hoje. Mas sei que se eu tivesse nascido em outro lugar que não na zona rural, eu seria outra pessoa. Eu devo isso à educação que meus pais me deram e por ter vivido na roça. Viver na roça para mim foi fundamental. Todo passo que eu dou, eu penso no lugar de onde vim, do que a gente passou, do que a gente enfrentou”.
NALLU
Nallu terminava de arrumar a mala para, em algumas horas, viajar de ônibus até Carnaíba, a 400 km de Recife, passar o feriado de Natal e Ano Novo com a família. Nas últimas horas do ano na capital, a estudante de jornalismo me recebe no seu apartamento, na Avenida Caxangá. “Meu nome é Nadsandry Rodrigues, que é uma mistura do nome do meu pai com a minha mãe, Nadjane e Sandryno. Nallu é como todo mundo me chama aqui”. Nallu tem 22 anos e nasceu em Afogados da Ingazeira, terra natal de sua mãe. O pai é natural de Serra Talhada. Aos oito meses de idade, foi para Carnaíba, a 20 km de Afogados, morar com a tia avó paterna, Helena, que tem sua guarda legal e é a quem chama de mãe até hoje.
Dois fatores externos interferem a nossa conversa sobre a sua história. O primeiro, quando um forró pé-de-serra começou a tocar na televisão ligada na sala, que fez Nallu parar por uns segundos e sorrir. O segundo: começa a chover naquele final de manhã e ela fala: “a gente gostaria muito que essa paisagem fosse lá (em Carnaíba), mas sei que quando estiver no caminho vou passar por muitos cenários de seca à medida que me aproximo”. Ela relembra de três incêndios que ocorreram em 2019, nas cidades de Floresta, Afogados da Ingazeira e Carnaíba. “A gente perde animal, perde de plantação… É complicado. Mas já diria a frase, né? O sertanejo é antes de tudo um forte”.
Tanto a força como a fragilidade dos filhos do Sertão estão atrelados à terra. Da figura sertaneja mais forte do repertório de Nallu, seu avô João Rodrigues, ela já viu os dois lados. Conhecido na cidade como João Grande, pela postura sempre valente, o agricultor nunca saiu de Carnaíba, mas teve os seus momentos de cogitar a migração. A primeira e única vez que o viu chorar foi no começo de uma chuva forte, durante uma seca em meados de 2007. “Dava para ouvir ele soluçar do meu quarto e era por causa da chuva. No outro dia ele estava numa alegria, num entusiasmo! Eu digo que vim para cá e perdi essa intensidade com as coisas da natureza. É uma gente tão brava, tão forte, que para tirar o choro só uma coisa que a gente precisa muito, que é chuva”.
Apesar da relação mais distante, os pais de Nadsandry não deixaram de nutrir expectativas a respeito da filha. “Quando você mora no interior, a coisa é muito de ser doutor. Então, a minha mãe sempre quis me ver de jaleco ou de roupa social trabalhando em um fórum”, conta. Sandryno é cantor de vaquejada e também vive no interior, viaja para várias cidades da região por causa do trabalho. Nadjane foi morar em São Paulo em busca de mais oportunidades depois do nascimento da filha. Lá estudou gastronomia e trabalhou em alguns lugares, mas voltou para Afogados pelo alto custo de vida no Sudeste. Este outro movimento migratório interno acontece desde os anos 1920. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, 12,66% dos moradores de São Paulo em 2015 eram vindos de outros estados brasileiros.
Por influência do pai e de Carnaíba, cidade com forte raiz cultural, Nallu sempre gostou de música e de saber a história das coisas. No Ensino Médio, foi natural entender que sua área era comunicação, e nasceu o sonho de fazer jornalismo. Foi aprovada no curso que queria em 2015, em uma universidade particular. A tia avó deu todo o apoio para que fosse morar em Recife. Além de ser bolsista parcial, a primeira casa de Nallu na capital foi a Casa do Estudante de Carnaíba, localizada no bairro da Madalena, que dividia com outros 17 carnaibenses. É comum que cidades do interior mantenham casas para os universitários que fazem essa migração, assim eles custeiam apenas as próprias despesas de alimentação e transporte. “Eu acho que iguais a mim ainda serão muitos, esses que vêm. Fico muito feliz quando tem gente perto, porque eu consigo ver onde estão chegando”.
Mas não senti diferença entre o Agreste e a Caatinga, e entre a Caatinga e aqui a Mata a diferença é a mais mínima. Está apenas em que a terra é por aqui mais macia; está apenas no pavio, ou melhor, na lamparina: pois é igual o querosene que em toda parte ilumina, e quer nesta terra gorda quer na serra, de caliça, a vida arde sempre com a mesma chama mortiça.
Tudo acontecia como esperado até Helena ter um problema de saúde e não conseguir mais cobrir o custo da universidade. Nallu faz um novo vestibular e ingressa no curso de Ciências Sociais na UFRPE, faz três períodos e cogita uma volta definitiva para Carnaíba, já que não realizaria o sonho de cursar jornalismo, motivo de ter deixado sua família e a cidade. Depois de três meses no sertão, recebe a notícia da aprovação em Jornalismo em outra faculdade, desta vez como bolsista integral.
“Poder aproveitar as oportunidades que tive é um privilégio, tenho muitos amigos que passaram em vestibulares de Recife e não entraram porque não tinham condições de vir. Passei também por muita dificuldade aqui, tive que escolher entre pagar o aluguel e a passagem ou comer, e escolhi pagar o aluguel e a passagem e sobrava R$30 pra comprar comida. Dos quatro anos morando aqui, a primeira vez que a minha mãe conseguiu me visitar foi quando fiquei internada há um mês.”
No poema de João Cabral, o retirante se frustra conforme se aproxima da capital e continua ouvindo queixas de trabalhadores que encontra no caminho, tão Severinos quanto ele. Acontece, ainda, que o maior desejo dos sertanejos, as águas, quase se torna seu leito de morte no litoral. “Eu aprendi esse efeito reverso e vi das duas realidades. Quando alaga aqui e tanta gente fica doente, perde casa… Às vezes paro e rezo pra Deus mandar essa chuva para lá, porque a gente tá precisando tanto. Dá uma alegria de ver a barragem sangrar no sertão, e o pessoal posta no Facebook e no Instagram como se fosse um evento. É água! Isso é muito rico, a gente deixa de valorizar”, conta Nallu.
Sobre voltar para Carnaíba, ela já perdeu as contas de quantas vezes considerou. O motivo é o tempo perdido junto da família, os aniversários em que está ausente, os feriados, e também os dias mais difíceis. “Se tivesse o curso de Jornalismo lá em Carnaíba ou em outra cidade próxima, eu faria sem pensar duas vezes, a capital não seria minha primeira opção. Eu abri mão de casa por causa de um sonho. Por mais que eu more em Recife há anos, aqui nunca vai ser a minha casa. Se eu tivesse a oportunidade de estar lá e poder passar todos os aniversários com a minha mãe, é óbvio que eu estaria”.
“Antes de sair de casa aprendi a ladainha das vilas que vou passar na minha longa descida. Sei que há muitas vilas grandes, cidades que elas são ditas; sei que há simples arruados, sei que há vilas pequeninas, todas formando um rosário cujas contas fossem vilas, de que a estrada fosse a linha."
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