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Longe dos pais e bem perto do coronavírus: a pandemia dos filhos de profissionais de saúde

Atualizado: 22 de jun. de 2021

Reportagem: Alice de Souza


Ilustração: Iasmim Vieira

Filha de uma obstetra e de um anestesiologista, Clara, de 6 anos, foi levada para a casa dos avós em março de 2020, quando os primeiros casos de covid-19 foram confirmados em Pernambuco. A família acreditava que passaria, no máximo, alguns dias separada, mas as expectativas não se confirmaram e com a perpetuação da pandemia, o fechamento das escolas e a mudança na rotina profissional dos pais, Clara só retornou para casa em fevereiro de 2021. Ainda assim, não completamente. Quando os pais precisam de apoio para trabalhar ou para as aulas online, sai de novo do lar.


Da confirmação do primeiro caso de covid-19 no Brasil, em 26 de fevereiro do ano passado, até o dia 24 de maio deste ano, 536 mil profissionais de saúde no país tiveram a doença, segundo o Ministério da Saúde. São 829 mortes nas diversas categorias, mais da metade delas somente em 2021. Ser profissional de saúde, desde então, é estar na iminência do adoecimento físico ou mental. A pandemia, além de trazer uma rotina exaustiva, reconfigurou a estrutura familiar dessas pessoas. Por trás de muitas delas, estão crianças e adolescentes que se viram sem escola, sem a presença constante dos pais e até sem o mesmo espaço físico de moradia.


No começo da pandemia, Clara e os pais passaram três meses totalmente afastados. Foram dias sem abraços, sem contato físico, com no máximo videochamadas diárias e troca de olhares a metros de distância. “Uma semana virou duas, que viraram meses. A gente tinha que continuar trabalhando”, lembra Carolina Alves, 37 anos, mãe da menina. Depois desse tempo, as visitas maternas passaram a ser um dia na semana. O primeiro abraço com o pai só ocorreu em agosto. “Eu não vou pegar coronavírus, não?”, perguntou Clara, na ocasião.


A menina ficou sem costumes como dormir abraçada com a mãe. Chegou a reclamar a falta dos brinquedos e, hoje, quando questionada, sabe bem do que mais sentiu falta. “De abraçar meus pais. Eu sentia muita, muita saudade”, diz. Apesar da rotina interrompida, Carolina não percebeu mudanças comportamentais na filha. “Como ela já convivia muito com os avós, acho que ajudou. Clara também sempre foi muito tranquila.”

A médica pode se considerar sortuda. Segundo a Unicef, a pandemia colocou a saúde mental de 332 milhões de crianças em risco. “Há muitos filhos de profissionais de saúde que vivenciam o medo, o horror de que algo aconteça com seus pais ou cuidadores”, afirma a professora de pediatria da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e psiquiatra da infância e da adolescência Ana Maria Costa Lopes.

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Por isso, um ano e dois meses depois que muitos profissionais, assim como os pais de Clara, decidiram se afastar dos filhos para protegê-los do coronavírus, os efeitos têm chegado. Ainda que não haja nenhuma pesquisa científica realizada no Brasil sobre os impactos da pandemia nos filhos dos profissionais de saúde, médicos, enfermeiros e fisioterapeutas entrevistados pela Agência Retruco relataram mudanças de comportamento nos pequenos, que vão desde a perda da afetividade até queda no rendimento escolar. Alguns deles receberam alerta de psicoterapeutas e pedagogos sobre comportamentos agressivos inexistentes antes da crise sanitária.


Um ano longe de casa e a rotina de videochamadas


“Mãe, você já tomou a vacina?”, perguntou Ágatha, de 8 anos, para a mãe, Eliana Santos, de 41, em um áudio no Whatsapp. Enfermeira em Ribeirão Pires (SP), Eliana foi convocada a ir para São Paulo em março de 2020, dividir um flat com colegas e trabalhar em uma Unidade Básica de Saúde atendendo a população em situação de rua. Não tinha com quem deixar os filhos, como muitas mulheres profissionais de saúde, a maioria dos cargos de enfermagem no Brasil. A solução foi mandar Ágatha e o irmão, Pedro, de 16 anos, para a casa da avó. Pedro já voltou para casa, Ágatha ainda não.


A menina vive desde março de 2020 com a matriarca, na mesma rua da própria residência, mas não pode voltar para casa. “Quando ela foi para lá, eu só pensava que não poderia trazer o vírus, pois meus pais são idosos”, conta Eliana. “Foi um pouquinho triste, minha mãe voltou, mas aí a gente começou a fazer videochamada, e a vovó começou a cuidar de mim”, conta Ágatha. A enfermeira passou dois meses em São Paulo, vendo a filha apenas on-line. Nos fins do expediente, lembra, sentava no chão e chorava. Acordava na madrugada aos prantos. “Eu pensava, vou morrer, não vou ver meus filhos crescerem.”


Eliana tinha motivos para acreditar nisso. Segundo dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), as mulheres representam 85% de todos os casos de enfermeiros e técnicos de enfermagem que tiveram covid-19. Entre os óbitos, foram sete em cada 10. Uma pesquisa aberta pelo Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), sobre os impactos psíquicos da pandemia em mulheres mães de crianças ou adolescentes e em seus filhos, recebeu mais de 30 mil respostas.


Ainda que não seja direcionada apenas a profissionais de saúde, a resposta ao chamamento público demonstra que há um impacto. “A procura nos surpreendeu, há muitas mulheres querendo falar. Ainda estamos analisando os dados, mas pela procura dá para perceber que houve um impacto e que muitas mulheres estão preocupadas com os seus filhos”, explica a professora e pesquisadora do IFF, Paula Gaudenzi.

Eliana é uma delas. Para tentar aliviar a saudade, ela e a filha se falavam todos os dias pelo telefone. Em algumas das chamadas, a menina reforçava a preocupação com a saúde da mãe. “Ela falava assim: mamãe, você não pode pegar covid. Mamãe, quando o corona vai embora?” Depois de alguns meses, Eliana decidiu trazer Pedro de volta para casa, pois soube pelos pais que o filho estava passando muito tempo trancado no quarto.


A preocupação dela tem sentido, pois 54% das famílias relataram que algum adolescente do domicílio apresentou sintomas de adoecimento mental, segundo a Unicef. Separada há mais de um ano da filha, Eliana aproveitou para fazer uma reforma no quarto da menina. Comprou móveis novos, planeja dar o notebook dela para Ágatha estudar e agora espera a hora de trazer a menina de volta.


Teme deixá-la só em casa com o irmão e não quer fazer isso enquanto não puder acompanhar as aulas de Ágatha. Mas, ao mesmo tempo, convive com uma saudade dolorosa. O primeiro abraço entre as duas só ocorreu em dezembro. “Eu não vejo a hora de isso tudo passar, de tudo acabar, de voltar a rotina da escola. Sei que vou ter problemas com a minha mãe, pois as duas estão muito apegadas, mas preciso dela em casa.”


Mudanças de comportamento, agressividade e queda de rendimento escolar


Em um ano e dois meses, a vida de Vitor, de 3 anos e meio, mudou três vezes. Primeiro, interrompeu a adaptação escolar, iniciada poucos dias antes de a pandemia começar. Depois, viu a mãe, a enfermeira Karina Albuquerque, de 36 anos, sair de casa para proteger a família do coronavírus. Em seguida, a mãe voltou, mas os pais se separaram. Mudou novamente. No começo do ano, a escola chamou Karina e avisou que o menino estava com comportamentos agressivos e desatentos nas atividades. A enfermeira credita às transformações abruptas na vida do filho e buscou ajuda.


Karina trabalhava em uma Unidade de Saúde da Família de Jaboatão dos Guararapes (PE) no começo da pandemia. Também era diretora de comunicação do Sindicato dos Enfermeiros de Pernambuco (SEEPE) e lembra, que nos primeiros dias, ficou paralisada com os colegas em uma reunião, sem saber como agir diante da pandemia. Na época, começou a chorar o caminho inteiro no regresso do trabalho, com medo de levar o vírus para a família.


Esse foi um sentimento comum à categoria. Enfermeiros e técnicos de enfermagem foram os que mais se infectaram e morreram por covid-19 no Brasil. São 56 mil casos e 784 mortes na categoria até o fim de maio, de acordo com o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), números que inclusive demonstram uma subnotificação dos dados oficiais do Ministério da Saúde. Segundo o Cofen, que abriu um canal de escuta online voltado aos profissionais da linha de frente, a família é a maior preocupação dos profissionais nos atendimentos realizados.


Karina ficou com as mãos feridas de tanto passar álcool. O trabalho, que amava, passou a ser um fardo. “Eu ficava achando que ia passar para meu ex-marido e meu filho, só imaginava eles morrendo e eu me sentindo culpada”, lembra. Com 15 dias, decidiu sair de casa e só voltou dois meses depois. Em setembro, saiu novamente, em função da separação. Vitor ficou morando durante o dia com o pai e às noites com a mãe. No início do ano, com o retorno das atividades presenciais, a escola sinalizou as mudanças de comportamento no garoto.


“A gente já tinha percebido ele mais manhoso, com muito medo, medo de tudo. Se eu fosse na cozinha, ele chorava. E aí a escola disse que ele estava desatento nas aulas e mais agressivo em momento de frustração”, conta Karina. Ela procurou apoio profissional e, desde abril, Vitor iniciou o acompanhamento. Segundo Ana Maria Costa Lopes, situações de dificuldade na escola, comportamentos agressivos dentro de casa e com colegas, falta ou excesso de apetite e alterações do sono podem ser indícios de que a criança precisa de acompanhamento em saúde mental.


Eliana também recorreu à ajuda quando percebeu Ágatha mudar. Vez ou outra, enquanto estava no plantão, recebia ligações da filha pedindo ajuda nas aulas online. Em processo de alfabetização, a menina não conseguia realizar as atividades. Houve dia de Ágatha chorar para a mãe, ao telefone, com medo de “ficar analfabeta”. Sem poder acompanhar de perto, Eliana decidiu pagar uma psicopedagoga para entrar nas salas virtuais com a filha. “Pode ser que já houvesse algum déficit de atenção, mas que piorou muito com a pandemia”, diz.


A escola pediu à enfermeira o retorno da menina às aulas presenciais, mas o medo de Eliana não conseguiu deixar. “Já acompanhei casos de crianças na idade dela que morreram por covid. Então, quando acabar a pandemia, a gente corre atrás do prejuízo.”


Adoecimento mental de pais pode impactar no equilíbrio emocional de filhos crianças e adolescentes


Oito em cada dez profissionais da saúde brasileiros tiveram algum problema de saúde mental ao longo do último ano, estima uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas (FGV) com 1,8 mil pessoas de diversos campos. Apesar de estarem a mais de um ano dentro de hospitais e unidades de saúde, sete em cada dez profissionais disseram não se sentir preparados para lidar com a pandemia. Por outro lado, somente dois em cada dez receberam algum tipo de suporte em saúde mental. Medo, ansiedade, cansaço e tristeza são os sentimentos mais comuns entre eles, segundo o estudo.


Se esses profissionais são também pais de crianças, devem acender o alerta, pois um dos principais fatores para o desenvolvimento emocional dos filhos é o estado de saúde mental dos pais. “A criança, na sua vida psíquica, espelha de forma direta o ambiente familiar. Reflete o núcleo de parentalidade, de como ele lida com ela no dia a dia”, afirma a professora Ana Maria Costa Lopes.


A vivência emocional dos pais tende a influenciar a resposta emocional das crianças. “Pais mais ansiosos, que não têm tempo de se dedicar a entender o comportamento emocional das crianças, tendem a fazer uma hiperestimulação. A criança passa a ter referência invertida e responde de forma exacerbada diante de um problema”, diz o professor associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutor em neurociência do comportamento Neander Abreu.


O estudo “Saúde mental parental e regulação emocional infantil durante a pandemia de Covid-19”, realizado pela UFBA em 2020 com pais de crianças entre 5 e 12 anos, concluiu que quanto maior a ansiedade dos pais, menor a regulação emocional das crianças. A pesquisa, que comparou dados coletados perto dos 100 dias de pandemia com estudo anterior ao coronavírus, mostrou que houve um aumento dos níveis de depressão e ansiedade de pais e filhos durante a pandemia. “Isos é um alerta. Crianças que têm mais baixa regulação emocional, no fim da adolescência, têm mais risco de apresentar transtornos mental”, afirma Neander Abreu.


Essa é uma das atuais preocupações da fisioterapeuta Carmen Feliciano, de 41 anos. No começo da pandemia, Carmen enviou a filha Giovanna, de 17 anos, para a casa da avó. A menina ficou lá por quatro meses. Voltou para casa depois que uma tia adoeceu e ficou grave na UTI. Na mesma época, Giovanna começou a ter crises de falta de ar e choro constante. A preocupação era dupla, com o baixo rendimento nos últimos anos escolares e com a exposição da mãe no hospital.


“Como era tudo muito novo, dava esse medo, mas ao mesmo tempo eu não podia preocupar a minha avó. Era angustiante saber que eu não podia morrer de preocupação. E não poder estar perto da minha mãe. Se acontecesse qualquer coisa, não ia poder ficar perto dela”, lembra Giovanna. Carmen teve covid uma semana depois da irmã, mas de forma leve.


Nesse período, o filho mais novo, Miguel, de 6 anos, também ficou mais afastado da mãe. A pandemia alterou até hoje a rotina do menino. “Minha mãe tem que sair pra trabalhar e só volta de tarde, daí eu tenho que fazer a turma da tarde e não vejo meus amigos”, reclama. A fisioterapeuta percebe no filho uma mudança na afetividade. “Ele sempre foi de abraçar muito, sinto que hoje é bem mais retraído.” A família quer procurar ajuda de um profissional de saúde mental, mas esbarra na rotina. “Sinto que é uma necessidade e estou devendo isso, pela correria. Meu marido agora foi para o Rio Grande do Sul, cuidar dos pais, que são idosos. Estou só com eles.”



Como lidar com as informações e mitigar a ausência


O dilema da presença dentro de casa e da convivência é só um da rotina de filhos de profissionais de saúde na pandemia. Há outro, o que falar, o que não deixar os pequenos saberem, como contar sobre o trabalho dos pais. Entre os profissionais entrevistados pela reportagem, a solução mais frequente foi evitar contar detalhes do que vêem dentro dos hospitais e procurar explicar porque precisavam se ausentar de casa ou ter jornadas mais longas de trabalho. Ter essa transparência, explicam especialistas em psiquiatria e psicologia consultados, é fundamental para evitar o descontrole emocional da criança.


De acordo com a professora Ana Maria Costa Lopes, a pandemia impôs uma situação inesperada, mas nem todas as crianças terão um transtorno de ansiedade em função dela, muitas vivenciarão um estágio anterior, o de sofrimento. “O adoecimento mental é multifatorial. E se a família consegue fortalecer os fatores de proteção, as chances de adoecimento são menores”, explica. O diálogo, afirma, pode ser o marcador de diferença de como a criança irá encarar a ausência dos pais e o trabalho deles. “É importante explicar, em uma linguagem acessível, que a criança foi deixada com um núcleo de apoio porque os pais estão trabalhando em uma atividade que pode colocar em risco a vida delas”, explica. A criança, complementa, tem uma capacidade de resiliência capaz de responder a essas mudanças.


Foi o que a médica Juliana Castelo Branco, de 32 anos, tentou fazer quando decidiu sair de casa em março do ano passado. A solução foi deixar os filhos Fred, de 5 anos, e Joaquim, de 3, com o marido. Juliana foi morar com a mãe, também médica, para proteger a família do coronavírus, e passou três meses longe dos meninos, vendo-os apenas por videochamadas. “Meu marido tinha feito um transplante há pouco tempo, então o medo era grande. Sabia que estava protegendo eles, mas foi muito ruim. Eu chorava demais”, diz.


“A gente explicou porque eu iria sair de casa e eles encararam bem no começo, mas depois começaram os questionamentos. Um dia fui sair, e o mais velho perguntou. Expliquei que ia cuidar de pessoas que estavam dodói. Aí ele disse: mas eu também estou dodói e você não vai estar aqui”, lembra. Segundo Ana Maria Costa Lopes, para evitar que esses questionamentos e sofrimentos da criança se transformem em adoecimento psíquico, os pais devem fortalecer a rede de proteção, isto é, os vínculos e momentos em comum.


Algumas formas são evitar o isolamento dentro do próprio ambiente familiar, promover a circulação de todos dentro de casa, reduzir o uso de aparelhos eletrônicos e focar em momentos juntos, encontrar - de acordo com as restrições de circulação previstas - momentos para brincar ao ar livre com as crianças. “É importante não exacerbar a quantidade de informações e cuidar das desinformações que a criança recebe, tratar de outros assuntos e dar tempo para a criança expressar também suas preocupações”, complementa o professor Neander Abreu.



*Esta reportagem foi produzida pela Agência Retruco, com o apoio de uma bolsa de Thomson Reuters Foundation, a partir do COVID-19 Centro de Reportero sobre la Crisis-América.

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