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Lucro, risco e desinformação: a receita por trás da automedicação

Reportagem por Nathália Pereira

Foto: Pexels

“O pessoal vem pedir ivermectina adoidado. A gente não tem mais o medicamento. Está em falta nas distribuidoras, não conseguimos comprar mais”. Atendente de uma farmácia independente no bairro do Jordão, na zona sul do Recife, Laura* viu a procura por medicamentos como ivermectina, hidroxicloroquina e nitazoxanida quadruplicar desde que foram noticiados os primeiros casos de infecção por coronavírus no mundo.


Ela conta que basta surgir um boato sobre um remédio milagroso na prevenção a covid-19 para que cheguem à farmácia clientes aflitos em busca dele. Laura chegou a atender o mesmo senhor quatro vezes ao longo de um dia - em cada uma delas o homem pediu por um medicamento diferente, mas sem apresentar receita médica ou procurar orientação profissional.


“Os clientes já pedem por determinado remédio, trazem o nome anotado, mostram fotos no celular. Já dizem que é pro corona. Tem gente que diz que é pra prevenir também. A impressão é a de que existe alguma informação (circulando) pelo WhatsApp, porque as fotos que trazem são muito parecidas”, detalha.

A mudança na rotina de trabalho de Laura é compartilhada por colegas em muitas farmácias da Região Metropolitana do Recife. A reportagem da Retruco conversou com funcionários de três grandes redes com unidades distribuídas pela capital e todos foram enfáticos: as pessoas estão se medicando por conta própria, acreditando em informações sem base e zerando estoques de substâncias fundamentais no tratamento de outras doenças e sem eficácia comprovada na prevenção contra a covid-19.


Na farmácia em que Giovanna Silva trabalha, no bairro das Graças, zona norte, o crescimento na saída desses remédios foi em torno de 30%. Em outra unidade da mesma rede, no bairro da Boa Vista, no centro, a balconista Bruna* diz que “se antes eu vendia duas caixas de medicamentos do tipo por dia, agora vendo quatro e encomendo mais duas”. No meio disso, Bruna atendeu uma cliente que tentava comprar a hidroxicloroquina que utiliza no tratamento da Lúpus. A farmácia foi a sexta que a paciente visitou em busca da medicação e mais uma que deixou sem sucesso.


Lucro em tempo de crise


Dados apresentados em estudo encomendado pelos conselhos regionais de farmácia sobre o faturamento das drogarias com medicamentos relacionados ao novo coronavírus constatam crescimento considerável das vendas nos três primeiros meses de 2020, quando houve a expansão da pandemia no país, em relação ao mesmo período do ano passado.


O sulfato de hidroxicloroquina teve aumento de 67,93%. Substâncias de uso mais popular, como colecalciferol (vitamina D, 35,56%) e a dipirona sódica (54,56%), também figuram na lista. O campeão de vendas foi o ácido ascórbico, a popular vitamina C, com 180,01% de aumento.


Em coletiva de imprensa realizada em abril, o secretário de Saúde de Pernambuco, André Logo, afirmou que as suposições sobre remédios para prevenir a covid-19 “têm sido uma festa para as farmácias”.

“O que previne a infecção pelo vírus é o isolamento social, a lavagem das mãos e medidas da chamada etiqueta respiratória”, pontuou o secretário.


Presidentes x Ministros da Saúde


O pânico que estimula nas pessoas o impulso de se automedicar diante da ameaça de infecção pelo vírus é mais fácil de ser compreendido quando analisado o comportamento assumido pelo presidente Jair Bolsonaro desde o início da expansão da pandemia no País. No dia 21 de março, Bolsonaro postou em sua conta no Twitter vídeo no qual afirma ter sido comunicado por profissionais do Hospital Albert Einstein sobre o início do protocolo de pesquisa para avaliar a eficácia da cloroquina em pacientes com covid-19. O presidente disse ainda que autorizou o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEX) a ampliar imediatamente a produção do medicamento. Até 25 de maio, Bolsonaro havia usado sua conta oficial para mencionar a cloroquina ou hidroxicloroquina pelo menos outras 20 vezes. A azitromicina foi citada em três tweets.


As manifestações de Bolsonaro a favor do uso da substância desde os primeiros sintomas da covid-19 aconteceram também durante pronunciamentos e entrevistas ao vivo. Em uma delas, realizada na frente do Palácio da Alvorada, o presidente defendeu o uso do medicamento e, ironizando a situação, se dirigiu aos jornalistas: “Alguém vai comprar aí? Tô fazendo negócio”. O posicionamento do presidente levaria à demissão do então Ministro da Saúde, Henrique Mandetta, e do seu sucessor, o oncologista Nelson Teich, em 15 de maio, menos de um mês após ter assumido a pasta. Em entrevista à GloboNews, Teich declarou: “é óbvio que antecipar o uso da cloroquina teve peso (no pedido de saída). Porque é uma escolha. O presidente achava que era melhor antecipar, e eu achava que não”. O desejo de Jair Bolsonaro foi atendido finalmente no último dia 20 de maio, quando o Ministério da Saúde, interinamente sob comando do general Eduardo Pazuello, divulgou protocolo para uso da cloroquina, sulfato de hidroxicloroquina e azitromicina contra os sintomas do coronavírus desde o início do tratamento. O protocolo prevê uma série de recomendações, como a de que o paciente deve assinar um termo sobre o uso da droga e seus possíveis efeitos colaterais, que incluem de disfunção grave dos órgãos a evolução para o óbito.


Cinco dias após o anúncio do novo protocolo nacional, a Organização Mundial da Saúde comunicou a suspensão temporária dos testes com cloroquina e hidroxicloroquina depois de um estudo, publicado na revista científica Lancet, demonstrar que as substâncias, além de não serem eficazes no tratamento da doença, aumentam as chances de óbito por arritmia cardíaca. O presidente da organização, Tedros Adhanom, reforçou que as análises se referem apenas ao uso em pacientes com o coronavírus, permanecendo seguro o tratamento para pessoas com doenças autoimunes ou vítimas de malária. A OMS se comprometeu a repassar atualizações à medida que for comunicada sobre. Ao comentar sobre o novo protocolo nacional, o médico e ex-ministro Henrique Mandetta apontou as orientações como “muito distantes do minimamente razoável” e disse que, ainda como ministro, presenciou reunião na qual o governo federal articulava alterar a bula da cloroquina para incluir nas recomendações a utilização contra a covid-19.


Prejuízos em longo prazo


Mesmo as substâncias de utilização mais comum e sem necessidade de prescrição médica podem apresentar efeitos colaterais se consumidos por tempo prolongado. A vitamina C, por exemplo, pode causar náuseas, vômitos, dores de cabeça, dores abdominais e diarreia.


“O uso de medicamentos por conta própria oferece sérios riscos à saúde, podendo resultar em reações alérgicas graves. Além disso, pode levar ao agravamento de doenças já existentes”, alerta a farmacêutica e mestre em Ciências Farmacêuticas pela Universidade Federal de Pernambuco, Maria Joanellys Lima. Ela chama atenção ainda para o fato de que os medicamentos podem mascarar a real causa de um sintoma ou provocar o surgimento de novas doenças.


“Isso acontece através da combinação com qualquer outra substância ingerida (outro medicamento, alimentos, bebidas). Também pode resultar em intoxicações, uma vez que, por não procurar orientação com o profissional de saúde, o usuário não tem conhecimento da dose, quantidades e intervalos corretos de uso”, detalha.


Além dos riscos já citados, remédios tomados sem cautela podem desencadear doenças crônicas e, quando consumidos por muito tempo, aumentar o risco de desenvolver dependência química e física. Também podem dificultar os cuidados dos pacientes realmente infectados pelo coronavírus.


“Além da falta de resultados comprobatórios para a covid-19, o uso sem orientação de qualquer remédio causa, além dos riscos clássicos da automedicação, a possibilidade de desenvolvimento de resistências de microorganismos, comprometendo a eficácia do medicamento no combate à infecções bacterianas futuras”, encerra Maria Joanellys Lima.


Em nota divulgada no último dia 8 de maio, o Conselho Federal de Farmácia e os conselhos regionais reforçaram o tema escolhido para a campanha de Uso Racional de Medicamentos 2020: “não entre em pânico e antes de usar qualquer medicamento, consulte o farmacêutico”. O órgão afirmou que tem aumentado a mobilização para orientar a sociedade diante do aumento da venda de medicamentos, a disseminação de fake news e sobre a importância dos profissionais farmacêuticos durante a pandemia.


*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados.


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