Após um crescimento de mais de 195% entre 2011 e 2015, a quantidade de bolsas despencou 62% entre 2015 e 2020
Reportagem: Amanda Rainheri
Nos últimos 15 anos, a primeira Universidade Federal a ter sede instalada no interior do Nordeste viveu momentos extremamente antagônicos. De investimentos e expansão em ritmo acelerado para os cortes e a estagnação. Em paralelo à redução de repasses, principalmente a partir de 2015, pelo Ministério da Educação (MEC), a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), que abrange os estados de Pernambuco, Bahia e Piauí, viu a oferta de bolsas de mestrado despencar 62,29% entre o melhor ano, 2015, e 2020.
Os números são de dados obtidos pela Agência Retruco através da Lei de Acesso à Informação (LAI), junto à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), braço do MEC que atua na expansão e consolidação da pós-graduação. Seguindo o panorama observado em todo o Nordeste, o ano com maior oferta de bolsas de mestrado foi o de 2015, com 358 bolsas. Para se ter ideia, em 2011, esse número era de 121 bolsas. Um aumento de 195,8% em um período de quatro anos.
O crescimento foi interrompido abruptamente em 2016, quando a quantidade de bolsas caiu para 241, uma redução de mais de 32% em relação ao ano anterior. Nos anos que se seguiram, mais uma série de retrocessos. Em 2018, o mais crítico do declínio, o investimento no mestrado da Univasf voltou ao patamar de 2011, com 130 bolsas ofertadas.
A médica veterinária Gabriela Nascimento, de 34 anos, conhece de perto o drama. Formada na primeira turma de medicina veterinária da Univasf, no fim de 2010, ela sempre dependeu de auxílios para se manter na universidade. “Eu venho de uma família pobre e fui uma das primeiras a entrar na universidade. O período de graduação foi de muita luta para minha mãe, que é costureira, poder me manter em Petrolina, pois sou natural de Campo Formoso, na Bahia. E uma grande ajuda foram as bolsas de iniciação científica e monitoria que tive durante o curso, além de outros auxílios para alimentação e transporte. Acho que pelo menos 80% do tempo de faculdade tive algum tipo de bolsa”, conta.
Quando se formou, Gabriela foi absorvida pelo setor onde estagiava, no Centro de Manejo e Conservação da Caatinga (CEMAFAUNA). Trabalhou lá por sete anos, período no qual realizou o mestrado em Ciências Veterinárias no Semiárido na Univasf. “Não recebia bolsa, porque eu tinha vínculo empregatício. O experimento foi realizado todo nas instalações do CEMA e como a maior parte dos recursos fornecidos por eles. Mas como não tive nenhum tipo de fomento, além do apoio do CEMA, precisei pagar muita coisa do meu bolso. Na época do meu mestrado, 2014 a 2016, já vinha ocorrendo uma redução dos investimentos na pós-graduação, porém eu tive esse apoio do CEMAFAUNA, centro construído com verba do extinto Ministério da Integração para atender as demandas ambientais da obra de integração do Rio São Francisco”, lembra.
No fim do mestrado, ela decidiu que continuaria a vida acadêmica e ingressaria no doutorado. Como não havia possibilidade de conciliar o trabalho com os estudos, a veterinária optou por deixar o emprego e voltar a depender da bolsa, no valor de R$ 2,2 mil. “No final de 2016 fiz a seleção para o doutorado no Programa de Ciência Animal Tropical da UFRPE e fui aprovada. Em 2017 saí do CEMA e iniciei as aulas. Nesse início, sem bolsa. Já haviam ocorrido muitos cortes e redução no quantitativo de bolsas e eu teria que aguardar algum aluno mais antigo defender para que a bolsa dele fosse transferida para mim”, conta. O benefício só chegou um ano e meio após o início do doutorado e é assim que Gabriela tem se mantido desde então. “Em 2019 se intensificaram os cortes e meu programa caiu para o conceito 3, algo muito ruim de se acontecer, porque a distribuição das bolsas é baseada na nota do curso. Então veio 2020, com a pandemia, e o sistema foi bloqueado para renovações ou transferências”, relata a doutoranda.
A chegada da pandemia definiu contornos ainda mais dramáticos. “Nosso curso fazia a renovação anual das bolsas ao invés de colocar o período total do curso. Assim, de uma hora pra outra a gente descobre que nossas bolsas não seriam renovadas. Foi um baque enorme. Sem dinheiro para nada, no meio de uma pandemia.” A médica veterinária lamentou a situação vivida nos últimos anos. “Durante todo o período de bolsa, ela sempre foi usada para minhas despesas pessoais e para compra de material que me permitisse desenvolver minha pesquisa. Com o passar do tempo a universidade foi ficando com menos verba para insumos, até mesmo os mais básicos, e a realidade é que muitos alunos e orientadores precisam tirar dinheiro do bolso para continuar produzindo ciência.”
A história de Gabriela não é um caso isolado. Presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Univasf, Bruno Melo conta como os cortes de bolsas e a redução orçamentária impactaram estudantes de graduação e pós, que chegaram a abandonar os cursos. “Foram 70% de bolsas de assistência estudantil cortadas. A Univasf gastava no ápice dos investimentos R$ 10 milhões com bolsas, hoje são cerca de R$ 3 milhões. Isso já representaria muito para qualquer lugar, mas para cá, interior, é ainda pior. Muita gente depende da bolsa para se manter. Houve quem abandonasse o curso. Teve estudante de medicina tendo que trabalhar na portaria do hospital, outros que precisaram voltar para suas cidades para trabalhar em comércio para se manter”, relata.
Outros benefícios, como o Restaurante Universitário e o transporte entre os campi também foram afetados. “Em 2019, com o contingenciamento de Weintraub (ex-ministro da Educação), foram demitidos 150 funcionários terceirizados, gente da limpeza, portaria, vigilância e motoristas. Quando tinha funcionário, não tinha insumos. A gente tinha banheiros sujos e sem papel higiênico. Sem os funcionários de portaria, alguns prédios ficaram inacessíveis em alguns horários, então os alunos não podiam fazer trabalhos nesses locais. Os ar condicionados passaram a ficar desligados, isso em um ambiente de 37ºC”, lembra.
Os estudantes chegaram a realizar uma manifestação, cobrando melhorias. “Conseguimos melhorar algumas coisas, mas ainda falta muita coisa. O laboratório de biologia, por exemplo, não tem reagentes e quanto tem está vencido. O ventilador do laboratório também está quebrado. É um momento complicado para a ciência e a gente vê como ela é importante justamente em meio à pandemia, com o desenvolvimento de vacina. Infelizmente, o Brasil perde muito porque não investe nas universidades”, lamenta.
Reitor da Univasf entre 2012 e 2020, o professor Julianeli Tolentino conta que a instituição precisou enxugar os gastos para poder se manter. “No início do mandato, em 2012, tivemos uma crescente em relação aos investimentos. Nessa época a universidade era um verdadeiro canteiro de obras, com expansão de campi para outras cidades nos três Estados. Já no ano de 2014, tivemos grandes cortes no orçamento, que impactaram bastante as nossas atividades, principalmente ligadas à assistência estudantil, à necessidade de investimentos na compra de novos equipamentos e melhoria da infraestrutura.”.
Julianeli explica que uma série de adaptações foram necessárias. “A aquisição de equipamentos foi descontinuada e isso gerou uma série de prejuízos na execução de inúmeras atividades. O financiamento para participação de professores e estudantes em eventos também foi reduzido, assim como a aquisição de insumos e equipamentos de laboratório. Todas as áreas sofreram os impactos”, lamentou.
Para ele, a situação dos estudantes foi a mais doída. “Temos muitos estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Na Univasf, o percentual chega a 80% do volume total de estudantes. Consequentemente, os impactos com os cortes da assistência estudantil foram muito negativos.”
A pesquisa também foi duramente afetada. “Tínhamos, em anos anteriores, aumentado consideravelmente a oferta de bolsas de iniciação científica e de iniciação à docência, dentre outros programas. Precisamos fazer o cancelamento de muitas, impactando o desenvolvimento das atividades científicas e culminando, inclusive, no cancelamento de alguns programas. São prejuízos muito grandes para toda a comunidade universitária e para a comunidade da região, que usufruía dos serviços.”
Para Julianeli, o governo atual tem promovido um desmonte das conquistas feitas na última década. “Este novo governo tem feito de tudo para acabar com todas as nossas conquistas. Estamos sentindo na pele, com muita intensidade, as dificuldades que vêm somente aumentando para pelo menos conseguirmos manter o que foi conquistado nos últimos 15 anos”, lamentou.
A reportagem procurou a Univasf desde o mês de janeiro para se pronunciar sobre a situação, mas a universidade não havia indicado um porta-voz até a publicação desta matéria.
Questão política
A falta de um posicionamento da Univasf envolve uma questão maior. Além de todos os desafios impostos pela redução orçamentária, a Univasf ainda tem enfrentado sua maior crise política da história. Quando Julianeli deixou a reitoria, em abril de 2020, teve início um imbróglio judicial envolvendo a lista tríplice enviada ao Ministério da Educação (MEC). Desde abril, a universidade está sob intervenção, com o comando de um reitor pró-tempore, o que já causou desgastes e exonerações. “A Univasf, assim como outras universidades, está sofrendo bastante com os processos para indicação de novos reitores. Consequentemente, temos vivido momentos de paralisia. O processo de intervenção prejudica muito as atividades, principalmente neste período de pandemia”, apontou o ex-reitor Julianeli Tolentino.
A lista tríplice enviada pela Univasf ao MEC após eleição em novembro de 2019 foi suspensa por decisão judicial. O Tribunal Federal Regional da 5ª Região (TRF5) acatou parte dos pedidos feitos pela chapa formada pelos então candidatos Jorge Cavalcanti e Ferdinando Carvalho, que questionam a candidatura do professor Ricardo Santana de Lima. Durante o período da eleição, ele estaria cedido ao Hospital Universitário (HU), por meio da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) – o que, segundo os autores da ação, o tornaria inelegível no Conselho da Univasf (o Conuni). O MEC não pode nomear nenhum dos nomes da lista até o final do processo, que não tem prazo para conclusão.
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