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Vacina, Fake News e disputas políticas


Foto: Pexels

Coluna por Amanda Borba


Em 2019, defendi a minha dissertação de mestrado afirmando que as notícias falsas, juntamente com um contexto político fragilizado, podem ser ainda mais devastadoras que uma doença, pois ajudam a espalhá-la e potencializá-la. Meu objeto de estudo, na época, era a cobertura do zika vírus na mídia brasileira – mais especificamente o posicionamento de um jornal de grande circulação no estado de Pernambuco. Hoje, 2020, confirmo a validade dessa afirmação, mas deparando com consequências ainda maiores, pois advindas de um vírus que, além de ter um potencial de letalidade muito maior, tem como pano de fundo um cenário político ainda mais instável, incerto.

Não precisa forçar muito a memória: 2015 foi o ano do zika no mundo. No Brasil, vivíamos o governo (2011-2016) Dilma Roussef, que começava a enfrentar as primeiras(?) investidas da oposição, que culminariam no Golpe. A essa época, a politização do zika era evidente, e o assunto passou a ser explorado pelos golpistas, que culpabilizavam a então presidenta de displicência em relação à síndrome congênita do zika alegando que o governo não vinha disponibilizando recursos suficientes para o combate à epidemia e que, pelo contrário, fazia vista grossa em relação à situação vivida pelos estados e municípios. Além disso, muitos boatos foram gerados em torno de vacinas, medidas protetivas, repelentes etc. No contexto político em questão, qualquer deslize – com ou sem “evidências”, como terminamos por aprender – poderia prejudicar ainda mais a situação de Dilma. Um problema de saúde pública da proporção do zika – e da microcefalia – tornou-se um prato cheio para a oposição.

Como, infelizmente, foi possível comprovar, o governo mudou; o contexto político não apenas é outro, como também, a cada dia, sofre reviravoltas comparáveis ao salto duplo twist carpado, que nos coloca diante de incertezas que nem o próprio coronavírus poderia prever ou causar sozinho. Atualmente, dormimos comemorando a descoberta de uma vacina contra a Covid-19 e acordamos no contexto da Guerra Fria – só que a “ameaça comunista” agora é chamada de “vacina chinesa”. Sem falar no troca-troca de ministros da saúde, que desembocou na nomeação de um militar como responsável por uma pasta que – arrisco dizer – é das que mais exige conhecimento técnico – uma questão de vida ou morte, mesmo.

Mas disputas políticas em torno de vacinas é uma novela já conhecida na história do Brasil. E embora o paralelo possa estar entrando em desgaste, a Revolta da Vacina (1904) é um episódio que vale a pena ser resgatado a fim de confrontar com o contexto atual – ainda que a comparação precise considerar, novamente, o contexto histórico daquele momento.

O levante, que aconteceu durante o governo de Rodrigues Alves (1902-1906), ficou caracterizado pela grande mobilização popular e pela extrema violência tanto por parte do governo quanto por parte da sociedade, resultando em centenas de mortos e feridos. Na época, com ajuda do médico sanitarista Oswaldo Cruz, que convenceu o Congresso a aprovar a Lei da Vacina Obrigatória (31/10/1904) – estopim da revolta – para erradicar a varíola, o governo permitia a entrada obrigatória de brigadas sanitárias nas casas das famílias para que fosse aplicada a vacina à força. Como se sabe, a situação chegou a tal ponto que o Governo declarou estado de sítio. Do episódio, contabiliza-se 30 mortes e cerca de 110 pessoas feridas.

As análises históricas posteriores são unânimes em elencar, entre os principais fatores do levante de 1904, a falha de comunicação com a população por parte do Governo, que não se preocupou em informar o povo tampouco abrir canais de escuta para os anseios e receios dos indivíduos em relação à epidemia e à vacina. Naquela época, é certo, não havia as fake news – não enquanto conceito consolidado(?) e intensificado pelo ambiente das redes. Mas os rumores eram inúmeros. A pesquisadora e historiadora Lilia Schwarcz diz que um desses boatos espalhava que a vacina era extraída de vacas e que se as pessoas tomassem iriam ficar com cara de bezerros…

Em 2020, entretanto, o problema definitivamente não passa pela falta de informação, mas talvez pelo excesso desta e, definitivamente, pela disseminação e consumo desenfreados das fake news. Se, por um lado, não tivemos os impropérios de Marcelo Castro – então ministro da saúde no contexto do zika (autor da frase: “o zika pode criar uma geração de sequelados”); também não tivemos que lidar com o projeto higienizador, preconceituoso e unilateral de Rodrigues Alves, em 1904; sem dúvida, seguimos precisando conciliar os receios em relação a uma doença que já matou mais de 150 mil pessoas só no Brasil com um contexto político não apenas instável, mas com um Governo eleito e alicerçado em mentiras.

Os boatos, rumores e/ou as fake news são a condição de existência política de Jair Bolsonaro, que iniciou a carreira com “kit gay” e “mamadeiras de piroca”, passando pelo “milagre” da hidroxicloroquina, e que parece querer “fechar” o ano de 2020 com sua rejeição à Corona Vac, sob a alegação imprecisa de que esta não lhe passa credibilidade. O pronunciamento poderia ser legítimo, já que o presidente alega que é preciso comprovações científicas para que uma vacina entre em uso, mas, ele, além de desautorizar o ministério da saúde, colocando o personalismo que lhe é peculiar acima de tudo, se contradiz ao dizer, em seu perfil no Twitter, que “O povo brasileiro não será cobaia de vacina nenhuma”. Outra vez, não é preciso forçar demais a memória para lembrar que, desde o início da pandemia do coronavírus, Bolsonaro se mostrou ferrenho defensor do uso da hidroxicloroquina, colocando-se contra o posicionamento da Organização Mundial de Saúde e da comunidade científica, que não via na medicação nenhum indício comprovado de que funcionaria como tratamento para a Covid-19.


Além disso, foram inúmeras as aparições do presidente em aglomerações, utilizando de forma inadequada a máscara, cumprimentando corpo a corpo seus eleitores e comportando-se sempre de modo a ignorar a Ciência. É duro dizer, mas o povo brasileiro foi e vem sendo, sim, cobaia do Bolsonaro e sua turma – e isso extrapola o âmbito da saúde o contexto da pandemia. Resta saber até quando.

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