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Aborto legal não é discutido pelas candidaturas ao governo de Pernambuco


Ilustração: Luca Delmas (@ludelmas)

Escondida dentro de um porta-malas e segurando firme um ursinho de pelúcia em um dos braços. Foi assim que uma criança capixaba de 10 anos entrou no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, o CISAM, no bairro da Encruzilhada, na Zona Norte do Recife, para interromper uma gestação após ser estuprada pelo tio. O caso aconteceu há pouco mais de 2 anos, e a menina tinha acabado de chegar à capital pernambucana para fazer o procedimento, previsto em lei. Na frente da maternidade, encontrou parlamentares cristãos e militantes conservadores que tentavam impedir a realização do aborto. A criança veio ao Recife após o procedimento ter sido negado no seu estado e o porta-malas simbolizou a única saída para enfrentar uma luta que parecia não ter fim. Ela não estava cometendo nenhum crime - ela havia sido vítima de um. Mas foi condenado à exposição, constrangimento, julgamento e perseguição. A lei brasileira permite o aborto nos casos de estupro, risco de morte para a gestante e para casos de anencefalia fetal. Mas o aborto legal é negado em 57% dos hospitais que governo indica para procedimento, segundo levantamento da organização Artigo 19. Assim, é preciso questionar: Por que há tantos entraves para o garantir o cumprimento de um direito? Estamos em ano eleitoral e o assunto segue fora do radar.


A Retruco analisou as propostas das 5 principais candidaturas ao governo de Pernambuco, Marília Arraes (SD), Anderson Ferreira (PL), Danilo Cabral (PSB), Raquel Lyra (PSDB) e Miguel Coelho (UB). Em nenhuma delas há ações para garantir a realização de um aborto legal no estado. MARÍLIA ARRAES (SD) Em campanha, Marília Arraes assume um compromisso especial com os serviços de atenção às mulheres, desde capacitação profissional à saúde física e mental, com projetos que prevêem a criação de centros de referência voltados à saúde integral da mulher, ao atendimento pré-natal, parto, pós-parto, com garantia de alimentação adequada para a mãe da gestação ao fim da amamentação. Entre as propostas da candidata não há, entretanto, nenhum aceno à melhoria das condições de realização do abortamento legal no estado.

Durante a pré-campanha, a política chegou a dizer abertamente em vídeo nas redes sociais que era contra o aborto (vídeo acima). A produção contava com a presença das duas filhas da candidata, e buscava responder aos ataques dos adversários sobre um outro vídeo, gravado em 2020, que dava a entender que ela defendia o abortamento. Raquel Lyra (PSDB)

Entre as propostas de governo e durante a trajetória de Raquel Lyra (PSDB), há uma preocupação relevante com as mulheres, com destaque à garantia da segurança e acolhimento em casos de violência. A saúde da mulher é defendida pela candidata sob duas perspectivas: criação de atendimento médico e laboratorial itinerante, e ampliação da oferta de especialidades e campanhas de prevenção e controle de doenças oncológicas, assistência ao climatério e violência sexual. Não há qualquer menção a garantia da realização do aborto nas formas previstas em lei. Nos últimos dias, a candidata divulgou uma carta aberta direcionada ao público cristão. Em um dos trechos, a tucana deixa claro seu posicionamento sobre o abortamento. "Nos unimos em um projeto que prega a defesa da família, que é contra o aborto, respeita as lideranças das igrejas, o amplo funcionamento dos templos e a liberdade religiosa. Um projeto que defende a honestidade e, acima de tudo, o olhar cristão para cuidar melhor de Pernambuco. Esses são os valores que sempre nos guiaram em nossas vidas públicas."


Anderson Ferreira (PL) Candidato de Bolsonaro em Pernambuco, Anderson Ferreira dedica pouco espaço para as mulheres em seu plano de governo. "Ampliaremos a participação e proteção da mulher na sociedade e no mercado de trabalho, por meio de cursos profissionalizantes, prevenção à violência e orientação jurídica". E não menciona iniciativas de atenção à saúde.


Danilo Cabral (PSB)

Candidato do partido que está à frente da gestão do estado há mais de 15 anos, Danilo Cabral (PSB) também não traz propostas voltadas à saúde da mulher. O socialista fala em garantia de complementação de renda, infraestrutura de assistência social, inclusão socioprodutiva e redes de proteção social às mulheres, crianças, adolescentes, pessoas idosas, pessoas com deficiência, LGBTQIA+, pessoas negras, povos e comunidades tradicionais.


Miguel Coelho (UB) De forma mais genérica, o plano de governo do candidato Miguel Coelho (UB) fala em ampliar as delegacias especializadas para atendimento e proteção da mulher, do idoso, "das pessoas com necessidades especiais", da população LGBTQIA+. No campo da saúde, o político apresenta uma única proposta, que é voltada à contracepção. Coelho se compromete implantar um programa de inserção de Dispositivo Intrauterino (DIU) para mulheres em idade reprodutiva.



A garantia do abortamento legal no estado, de forma segura, está presente apenas nas propostas de Jones Manoel (PCB) e Cláudia Ribeiro (PSTU), que não aparecem nas intenções de voto nas pesquisas eleitorais. Ambos também se colocam em defesa da descriminalização do aborto.


Por que é preciso falar de representatividade?

Das 11 candidaturas ao governo de Pernambuco nas eleições de 2022, apenas três são mulheres. Duas delas estão entre os cinco candidatos mais bem avaliados nas pesquisas. Ambas não apresentam propostas em defesa da garantia ao aborto legal no estado. A representatividade é um fator de extrema importância na política e a presença feminina nos cargos de poder gera uma condição de pertencimento para as mulheres. Mas ter uma mulher ocupando um cargo na política institucional é apenas o primeiro passo para a conquista de políticas públicas favoráveis às mulheres - não é uma garantia de melhores políticas voltadas para as mulheres. É o que pondera a pesquisadora e cofundadora e cogestora do projeto Meu Voto Será Feminista*, Juliana Romão. "A presença de mulheres amplia o que chamamos de política da presença. Não é garantia de ampliação de direitos, de inserção das condições adversas de gênero e raça no traçado das políticas públicas, na organização dos serviços oferecidos pelo estado, nem de uma agenda que observe no horizonte a emancipação política, econômica e social das mulheres imensamente diversas".

Arte: Gabriella Borges

A representatividade se manifesta de duas formas: simbólica e concreta. De forma simbólica, ela versa sobre o efeito das mulheres se verem ocupando aquele espaço. No caráter concreto, representa o engajamento pela luta das mulheres, ou seja, a partir de instrumentos utilizados pelo Estado para a resolução de problemas sociais latentes, como: acolhimento em casos de violência doméstica, equiparação salarial entre os homem e mulher, assédio sexual no trabalho, parto humanizado, aumento no número de creches e licença maternidade. No fundo, não basta ser mulher e não representá-las no conteúdo.


Juliana Romão acredita que com mais mulheres acessando o espaço de poder seja possível superar mais rapidamente - ou menos lentamente - as barreiras ao debate à garantia de um aborto seguro, gratuito e humanizado, que enxerguem os direitos sexuais e reprodutivos como basilares da dignidade, tanto quanto se alimentar, vestir-se, ter lugar pra morar. "O aborto não pode surgir como um assunto de esfera moral, numa ilha, como se não estivesse entrelaçado a fatores sócio-políticos e como se não pesasse mais nos ombros de mulheres mais vulneráveis, como as negras e periféricas", frisa.

Em ano eleitoral, o projeto Meu Voto Será Feminista cria o Mosaico Feminista, projeto de mapeamento de candidaturas femininas comprometidas com os direitos das mulheres, que já conta com mais de 170 inscritas. Ao integrar a lista, as integrantes assumem alguns compromissos, entre eles, o de lutar pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, pelo aborto legal, seguro e gratuito.


Enquanto nada é feito, os casos de direitos negados se acumulam

Recentemente, uma menina de 11 anos que teve o aborto negado pela família no Piauí há um ano, voltou a engravidar por estupro. A mãe não autorizou que a menina fizesse o procedimento, que é legal e gratuito, por considerar que "aborto é crime". Incontáveis vezes violentada, duas vezes grávida e múltiplas vezes perseguida pelo fanatismo legal e religioso. Acolhida em um abrigo, a menina anônima deixou a escola e não tem assistência emocional, psicológica e financeira. Em junho deste ano, uma reportagem do site The Intercept Brasil revelou que uma menina de 11 anos foi induzida a desistir de realizar um aborto legal depois que uma juíza perguntou se ela aguentaria segurar a gestação "mais um pouquinho". O caso gerou uma repercussão enorme e felizmente a criança conseguiu realizar o procedimento. Essas duas meninas anônimas não são vítimas isoladas. Mais de 30 mil meninas de até 13 anos foram estupradas em 2021, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Suas histórias são retrato da criminalização do aborto para meninas pobres vítimas de violência. A gravidez na infância ou adolescência atravessa projetos de futuro. Aborto não deve ser discutido como uma questão moral, mas como uma proteção de saúde para o cuidado das meninas.

Para o médico obstetra Olímpio Barbosa de Moraes Filho que atende mulheres vítimas de estupro ou em gestação de risco, que optam pelo aborto, desde 1996, esses casos absurdos e tenebrosos que acontecem são emblemáticos para mostrar a urgência que a sociedade tem de discutir a garantia do abortamento legal para que essas histórias como a dessas meninas não se repitam. "Na maior parte do mundo, na América Latina, essa discussão tem avançado, estão tratando o abortamento como deve ser tratado de acordo com a corrente científica, como problema de saúde pública e não na esfera criminal", frisa Moraes Filho, em entrevista ao Retruco.

Foto: BBC Brasil

Segundo o obstetra, a linha do tempo dos cuidados com a saúde da mulher vinha melhorando no país desde a criação do SUS, e começou a enfrentar dificuldades em 2013, e "nos últimos 3 anos vem chegando ao fundo do poço". Apesar do cenário, ele se diz otimista. "É apenas um momento que estamos passando. Em breve vamos avançar e nos aproximar das políticas dos países onde as mulheres são respeitadas. É cedo para falarmos sobre descriminalização, mas acredito que vamos avançar de outras formas, com a justiça e sociedade, cobrando que as maternidades e hospitais ofereçam o que é já garantido em lei", defende. Questionado sobre o desconforto de estar constantemente relacionado a questão do aborto no estado, Olímpio é taxativo. "Seria incômodo se eu fosse omisso, se eu ficasse covarde, se eu não tivesse lutando pelas mulheres. Eu defendo a ciência, a justiça, não me incomoda defender o que é correto. O que me incomoda é viver em um país que não respeita o direito das mulheres, me incomoda pessoas que querem tratar as mulheres como objeto". Católico de formação, o médico chegou a ser excomungado pela Diocese de Pernambuco, chamado de assassino e agredido na porta do hospital por grupos religiosos e parlamentares evangélicos contrários à realização do procedimento legal. Mesmo com toda a resistência de uma classe conservadora, o médico reafirma sua defesa dos direitos das mulheres e mostra que a categoria está unida nesse mesmo sentido.

"Nós [médicos] estamos trabalhando, garantindo, mesmo sem apoio da política macro, mas no miúdo do dia a dia, dos hospitais, a gente tem garantido e fazendo o máximo possível para garantir os direitos humanos dessas meninas e mulheres, respeitando o sigilo, a dignidade. Eu sinto que da mesma forma que eles tentam obstruir os direitos das mulheres, mas a sociedade civil não aceita mais isso. É só questão de tempo e aqueles políticos que não defendem os direitos das mulheres serão extintos".

Uma breve história sobre o aborto em Pernambuco


A lei que garante o aborto em 3 situações específicas não é de hoje. Foi na década de 1940 que um decreto do então presidente Getúlio Vargas concedeu o direito à interrupção da gravidez às mulheres vítimas de violência sexual ou que tivessem gestação de risco. "Estamos falando de leis de 1940, na época de ditadura, com apoio de famílias tradicionais, em um período em que todos os deputados eram homens. A população cristã apoiava essa lei", lembra o médico Olímpio. O protocolo de aborto em Pernambuco foi regulamentado por uma portaria do ex-governador Miguel Arraes, na gestão entre 1995 e 1998, com base em um decreto.

Foto: Allan Torres/Arquivo Folha de Pernambuco

O Cisam foi o terceiro hospital do país a criar um protocolo para a realização de abortos em casos autorizados pela Justiça. A unidade de saúde serve de apoio no ensino de disciplinas como “gestação de risco” e “assistência da saúde da mulher em idade fértil”. O Cisam capacitou médicos de outras regiões do Nordeste onde não havia o mesmo atendimento, mas o processo foi interrompido em 2006 por pressão de parlamentares religiosos.



Em 1984, foi criado o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM),com a proposta de descentralização, hierarquização e regionalização dos serviços, incluindo ações educativas, preventivas, de diagnóstico, tratamento e recuperação. A assistência à mulher em clínica ginecológica, no pré-natal, parto, puerpério, climatério, planejamento familiar, DST, câncer de colo de útero e de mama, além do atendimento a outras necessidades femininas, também fazem parte do PAISM. Não se fala de aborto.




*O Meu Voto Será Feminista é um projeto-ação criado em 2018 com o objetivo de garantir a visibilidade democrática de mulheres diversas e fortalecer a ocupação delas nos espaços de poder e aproximar a sociedade da política, por meio de estratégias de comunicação, articulação em rede, engajamento social e participação popular.


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