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Bione não vai pedir licença

Atualizado: 19 de mar. de 2020





Bem além de uma colagem de técnicas, processos construtivos e alinhamentos estéticos, o fazer artístico passa, muitas vezes, pelo expurgo de tudo que a pessoa - antes do ser artista - no centro da criação vigiou antes de parir o resultado. Os olhos atentos de Bione parecem querer gravar todo movimento ao redor, como uma sede insaciável por entendimento maior do que seu corpo adolescente consegue absorver. Mas ela é capaz de mais. Quem já a assistiu recitar em rodas de poesia dita marginal, os slams, tem ideia do quão poderosa é cada palavra sua.


Quando uma menina negra, nordestina e periférica lança o primeiro registro na música aos 16 anos, é difícil que críticas negativas às minúcias de produção ultrapassem a importância do feito. É como se parte da cobrança de que o trabalho seja tecnicamente bom fosse encoberta pelo tamanho da conquista em mobilizar o mundo, o seu mundo inteiro, para fazer a garota falar por si e a respeito do tanto que já sabe sobre a vida.


Foto: Jéssica Maia/Divulgação

'Sai da Frente', além de mixtape de estreia da recifense, é marco que faz de tapete as expectativas em torno dela, porque ultrapassa todas e entrega uma revolução em quatro músicas tão gigantes quanto quem as escreveu. Não precisava ser, mas é, em todos os sentidos, excepcional. Juntas as faixas funcionam como uma linha cronológica que vai das portas fechadas na cara ao tanto que ela já compreende que pode alcançar. Sentidas separadamente, soam como blocos temáticos que resumem o universo que começa a ser compartilhado.


Faixa homônima e abertura da mix, 'Sai da Frente' resgata memórias de quando oportunidades e crenças foram negadas. Transmutadas em estímulo, as barreiras são cama para ela lembrar que o sotaque pernambucano e as letras atrevidas de "uma poeta nordestina e preta" estão no mundo: “Eu não sei se o objetivo era para que servisse de estímulo, tá ligado? / Mas serviu / Eu não desisti”.

A ideia se repete em 'Deixa as Garota Brincar', um funk divertido que soa mais leve e tem o plus de falar mais diretamente sobre um dos inimigos, o machismo no movimento hip hop. “Tô te dando muita moral / E na real / Talvez tu nem mereça”, joga. Numa cena em que muitos dos artistas homens reivindicam visibilidade regional, mulheres ainda precisam gritar que “rap feminino” não existe, mulher não é subgênero musical e o diálogo pode e deve acontecer de igual para igual.


'Única' quebra o ritmo dos primeiros cinco minutos e meio, sem tirar qualidade do conjunto, e traz cadência lenta, num relato sobre um amor romântico entre altos e baixos. Abre caminho para a quarta, última e mais curta das músicas, 'Antes dos 20', um tópico a tópico de vislumbres de crescimentos e conquistas materiais. “Avisa a Lenne que eu vou dar um prédio pra Aqualtune”, canta.


Existe em cada detalhe do que rodeia Bione uma noção de irmandade que funciona como a decisiva volta na chave que faz ela ser o que é. Não é representatividade que se encerra no esvaziamento do termo. Na Aqualtune, produtora/selo/coletivo/casa pela qual o registro foi lançado, existe muito trabalho, para dar conta das burocracias e das especificidades das artistas que abraça, e muito afeto, que se materializa em café fresco passado por Lenne, produtora, amiga, incentivadora, para o lanche na tarde antes do show de estreia.


Bione quer alcançar o topo e levar as suas junto, mas fala por ela e só por ela. Quem souber ouvir vai aprender um bocado. 'Sai da Frente', então, é expressão antônima a de um pedido de licença não só semanticamente, mas também - e principalmente - um aviso de que viver no comando da própria vida e da própria arte é direito conquistado, não concedido.


PONTAPÉ


Poucas horas antes de Bione subir ao palco Sonic do Festival No Ar Coquetel Molotov 2019, para fazer o primeiro show da carreira como rapper, perguntei a ela o que passava pela sua cabeça naquele momento. Entre suspiros, olhando para um ponto longe, ela deu a seguinte resposta: “Embora eu saiba que vai dar tudo certo, tenho medo. Acho que é esse o sentimento que quem vem de onde eu venho tem quando faz qualquer coisa. A gente sabe que fez tudo certo, mas tem medo da reação das pessoas”.

Deu tudo certo, Bione. Começou.

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