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Começando pelo começo: ser criança é amargo e doce

Atualizado: 20 de mar. de 2020


Arte: Filipe Aca

Coluna por Eduarda Nunes


Quero começar pelo começo e pelo comum. Todo mundo já foi mar, já foi lama e já foi criança. Todo mundo saiu do útero, sentiu a nova realidade, o primeiro dente incomodando. Todo mundo começou a andar, começou a falar, começou a absorver os ideais da família que está perto, começou a lidar com gente de fora e a deixar transparecer o que aprendeu no berço sem a menor pretensão de nada. Só cumprindo o protolocolo dos primeiros momentos de existência.


Quando se trata dos pretinhos e das pretinhas, a infância é uma fase bem agridoce: ao mesmo tempo em que a gente brinca na rua, se rala, corre, se esconde e joga bola, a gente lida com o racismo que outros pequenos aprendem em casa, sem nenhum filtro ou pesar. Imagina você aos 4 anos tendo que ouvir alguma(s) outra(s) criança(s) dizendo, na lata, que não quer brincar contigo porque você é preta. Isso quando dizem, porque a ausência sem justificativa acontece muito. Imagina os pais da criança que recebe essa agressão. Eles sabem que isso acontece (porque aconteceu com eles) e que dificilmente essa criança vai vencer a vergonha e falar que sofreu essa violência. Deu nó? É só o começo. Avalia perceber o quanto de trauma a gente atropela e depois tem que lidar quando passa dessa fase.


Para além da falta de tato de outras crianças, tem o olhar pesado da sociedade em geral: o menino tem cara que vai dar para “bandido” e a menina é mais passível e aceitável de ser abusada sexualmente. Porque ninguém liga e, silenciosamente, todos concordam. Se dar conta de que uma pessoa que você vê como sonho, alguém que pode fazer o mundo melhor, é visto como ameaça ou ojeriza pelo resto do mundo, é doloroso. Que tudo bem ela não passar pra próxima etapa da vida, porque na macro-política vidas negras não importam, então melhor que se encerrem o quanto antes. É “interessante” como os homens brancos sustentam a dádiva de serem garotos para sempre. Até os filhos do presidente são meninos quando fazem coisa errada, mas ao pretinho que passa a vida sofrendo de faltas é natural o linchamento e a prisão, caso pise um dedinho mindinho fora da linha de civilidade europeizada que nos demandam.

Na imagem, Eduarda aos 3 anos. Foto: Arquivo pessoal. Arte: Filipe Aca


Para além dessas questões, ainda tem as constantes tentativas de embranquecimento, que é muito forte e vem não só das referências brancas que chegam na gente primeiro, mas dos familiares também. Afinal, não foi na nossa geração que o racismo surgiu e tem uma pá de gente mais velha que reproduz ideais brancos como os corretos sem nem saber o porquê, sem nem entender toda a violência que sustenta essa convicção. Por isso, também, a importância do crescimento e a consolidação da Geração Tombamento, por exemplo, movimento de valorização da estética das pessoas negras. Para além do debate sobre consumo, a importância das crianças e adolescentes poderem ter referências outras do que é belo, do que é massa, do que é estiloso (seja lá o que isso signifique) é enorme. Atualmente, a gente vê que usar o cabelo alisado de chapinha não é mais a única opção pra se sentir bonita. E que bom! Como é lindo ver meninas e meninos que conseguem ter a ousadia de usar o cabelo verde, azul ou rosa neon, trança até a panturrilha ou cabelo crespo bem armado em uma sociedade que desde sempre quis manter o controle dos corpos negros, destinando a eles apenas lugares escondidos e opacos. A gente teima em chamar atenção e isso é poderoso!





Tem uma galera fazendo os esforços necessários para que o futuro de nossas crianças sejam melhores que os nossos, como sempre foi. As trajetórias de vidas pretas estão sempre muito entrelaçadas. As mães e pais sempre estão trabalhando para que “meu filho não precise passar pelo que passei”, e o povo preto, em geral, batalhando pela nossa autovalorização e formação social e política. Sempre foi assim.


O dia das crianças está aí e, assim como viver a infância é agridoce, acompanhar a de nossas crianças pretas também é. A gente quer dar o mundo que não tivemos, ao mesmo tempo que temos vários receios sobre o mundo que a gente tem. O nosso amor e nossas rezas disputam com braços armados, a guerra às “drogas” e essa gente infeliz, mas, como diz Maya Angelou em seus escritos, nós, ainda assim, nos levantamos. E ainda somos absurdamente bonitos em vários aspectos, diga-se de passagem.


Eduarda Nunes é jornalista e compõe o Movimento Negro a partir do Coletivo Afronte e da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco. Escreve no Retruco quinzenalmente às terças-feiras.

Siga Eduarda em @nunadudes e o retruco em @retru.co.



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