Como o Grindr 'uberizou' a prostituição masculina
- Equipe Retruco
- 23 de jan. de 2020
- 11 min de leitura
Atualizado: 13 de mar. de 2020
Reportagem: Emannuel Bento / Edição: Luane Ferraz
Um rapaz estĆ” encostado no muro de uma rua vaga, cuja popularidade foi criada na base do āboca a bocaā. JĆ” Ć© noite, e quem se aproxima conhece os horĆ”rios daqueles que vendem prazer. O sujeito mantĆ©m um cigarro na boca, ou pendurado na orelha. Seu semblante passeia entre o mistĆ©rio e a sedução. Esse imaginĆ”rio construĆdo em torno do garoto de programa, alimentado pela ficção, passa por um processo de dissolução. Literalmente. Hoje, esse rapaz fumante pode nĆ£o ter āpontoā determinado ou hora especĆfica para aparecer. Seu rosto pode, nesse momento, estar vagando ao lado de outras dezenas de feiƧƵes disponĆveis, como se estivesse em um cardĆ”pio sexual.

O āmenuā Ć© o Grindr, um aplicativo para smartphones criado nos Estados Unidos por Joel Simkhal. O programa Ć© definido como uma ārede social para conectar pessoas gays, bi, trans e queer no mundo inteiroā. Na prĆ”tica, serve para que homens homossexuais e bissexuais encontrem sexo de uma maneira prĆ”tica e Ć”gil, influenciando a sociabilidade da comunidade gay contemporĆ¢nea. De acordo com agĆŖncia de notĆcias britĆ¢nica Reuters, o Grindr possuĆa mais de 4,5 milhƵes de usuĆ”rios em 2019. Os concorrentes sĆ£o o Hornet e o Scruff, focados na tribo āursosā.
O Grindr nĆ£o Ć© uma rede social de prostituição, mas tambĆ©m acaba funcionando como se fosse. Afinal, o mundo digital nĆ£o tem apenas revolucionado hĆ”bitos comportamentais, mas tambĆ©m prĆ”ticas profissionais. Com desemprego atingindo 12 milhƵes de brasileiros, a esfera pĆŗblica tem discutido a informalização do trabalho causada pelos aplicativos de transportes ou de entregas, mas os ābicosā via aplicativos chegaram atĆ© mesmo na profissĆ£o tida como a āmais antiga do mundoā.
Por dentro do menu sexual
A interface do Grindr Ć© simples, composta por uma grade de perfis disponibilizados do mais próximo ao mais distante de onde o usuĆ”rio estĆ” localizado, com indicação quase exata da distĆ¢ncia. Essa caracterĆstica Ć© possĆvel atravĆ©s da geolocalização - que reforƧa o paralelo com aplicativos que foram realmente criados com a proposta de oferecer serviƧos, como o Uber ou Rappi. Para achar um garoto de programa, basta clicar em perfis com nomes como āGPā, āAcompanhanteā ou que usam emojis de cifrĆ£o ($).
Nas descriƧƵes, os michĆŖs jĆ” antecipam alguns detalhes do serviƧo, como a existĆŖncia de um ālocalā para o ato sexual e suas preferĆŖncias de posiƧƵes, nesse caso, ativo ou passivo. Essa vitrine tambĆ©m exibe atributos fĆsicos. Aqueles com corpos malhados, atraentes e que demonstrem virilidade saem na frente, em uma reprodução do que ocorre fora do mundo virtual. PĆŖnis avantajados ou nĆ”degas volumosas tambĆ©m sĆ£o sinalizados, mas atravĆ©s de expressƵes ou códigos, pois nĆ£o Ć© permitido nudez nas fotos principais do perfil.
Nas conversas, no entanto, a troca de conteúdo pornogrÔfico ocorre sem pudor. A linguagem entre os usuÔrios do Grindr é objetiva, direta ao ponto nos interesses sexuais. Também é no bate-papo que o acompanhante vai revelar o seu preço e dar mais particularidades do seu serviço. Na Região Metropolitana do Recife, os preços costumam oscilar entre R$ 100 e R$ 300 por encontro (alguns cobram por hora).
A prostituição via internet, por sua vez, nĆ£o Ć© algo especificamente novo ou exclusivo do Grindr. Existem diversos sites para garotos de programa, facilmente encontrados em uma simples busca no Google. Na maioria deles, no entanto, os acompanhantes ficam submetidos a uma espĆ©cie de ārankingā de garotos mais acessados, enquanto os perfis pagantes conseguem permanecer no topo da lista. No Grindr nĆ£o existe isso, o que torna a visibilidade mais democrĆ”tica. TambĆ©m existem prostitutos que usam o Twitter, jĆ” que a plataforma permite nudez em fotos e vĆdeos, inclusive do ato sexual. Em contrapartida, essa rede envolve exposição excessiva. O Grindr permite um maior āsigiloā. NĆ£o por acaso, seu Ćcone Ć© uma mĆ”scara.
Além da praticidade e da privacidade, o que destaca o aplicativo é justamente seu poder de ressignificação. Isso é algo que é natural nas redes sociais. Quando foi criado em 2010, o Instagram era um aplicativo que tinha como premissa a publicação de fotos com filtros. Posteriormente, se transformou em poderosa ferramenta de publicidade, impulsionando negócios e propiciando um novo sistema de celebrização.
No Grindr, no entanto, essa ārevoluçãoā na comercialização do sexo ocorre na ilegalidade. Os Termos e CondiƧƵes de ServiƧo do aplicativo descrevem uma extensa lista de Regras de Utilização, Conduta e Utilização Proibidas, a exemplo desta: āNĆ£o utilizarĆ” os ServiƧos da Grindr para qualquer uso comercial, como a venda ou publicidade de bens ou serviƧos e compreende que os ServiƧos da Grindr se destinam apenas a uso pessoal e nĆ£o comercial no modo e fins pretendidos pela Grindrā.
A clĆ”usula proibitiva, no entanto, nĆ£o impede quem quer oferecer os serviƧos. O usuĆ”rio pode ser banido da rede caso seja denunciado por um outro utilizador, mas Ć© possĆvel criar uma nova conta com o mesmo e-mail da conta banida, o que facilita a vida dos acompanhantes. Ć o caso de Roberto (nome profissional), jovem pernambucano de 21 anos que atualmente reside no Ibura, periferia da Zona Sul do Recife. Sua conta jĆ” foi banida do aplicativo seis vezes na mesma semana. āEu tive que descobrir qual era o usuĆ”rio dos arredores que estava me denunciando. Quando encontrei, o bloqueei e o problema acabouā, explica.
āDigamos que uno o Ćŗtil ao agradĆ”velā

Roberto, que no aplicativo usa o codinome āNOVINHO GPā, foi um dos poucos acompanhantes que aceitaram conceder uma entrevista para a reportagem. NĆ£o foi fĆ”cil encontrar personagens, pois muitos se preocupam em romper a discrição. Alguns āGPsā me bloquearam logo após a proposta de entrevista, outros apenas diziam ānĆ£o ter tempoā para isso, enquanto alguns tentaram oferecer seus serviƧos sexuais. Sugeri ter a conversa em um local que fizesse parte do cotidiano do acompanhante. Isso partiu do desejo de imersĆ£o nessa realidade, mas tambĆ©m de um empenho em deixar o entrevistado Ć vontade. Roberto indicou um motel no Engenho do Meio, Zona Oeste da capital, localizado bem na ābeiraā da BR-101. Ele explicou que usava muito esse estabelecimento quando morava na Favela do Detran, no bairro da Iputinga.
Entramos em um quarto pequeno, com decoração azul e branco. Sentado na cama de casal, com o corpo duplicado em um espelho no teto, Roberto explicou que o Grindr foi a sua porta de entrada para a prostituição. āConheci o aplicativo quando tinha 18 anos, quando um amigo me apresentou. No comeƧo, eu fazia sexo por prazer. Mas com o tempo notei que algumas pessoas faziam por dinheiro e decidi fazer tambĆ©mā, disse, quando ainda nos habituĆ”vamos com o ambiente da entrevista, que a todo momento insinuava uma quebra de protocolo social.
Roberto continuava explicando suas motivaƧƵes para a entrada na prostituição, sendo a principal o dinheiro, claro. Mas uma outra caracterĆstica do aplicativo o influenciou. No Grindr, Ć© comum que homens nĆ£o mantenham contato depois do sexo. O prazer Ć© tido como algo imediatista, como a āmodernidade lĆquidaā de Zygmunt Bauman elevada ao mĆ”ximo em termos de relacionamento. āNotei que as pessoas faziam sexo por fazer, sem nenhum sentimento ou compromisso. E eu tambĆ©m gosto muito de sexo. Digamos que uno o Ćŗtil ao agradĆ”velā.
"Muita gente estĆ” percebendo a facilidade de conseguir dinheiro no aplicativoā.
No comeƧo, ele cobrava R$ 50 pelo sexo. Hoje, pede R$ 90. Se o cliente nĆ£o for o buscar de carro, Ć© necessĆ”rio pagar o Uber de ida e de volta. āPosso negociar com o cliente. Eu tenho uma maquineta e dividido em atĆ© cinco vezesā. A quantidade semanal sempre varia muito, mas em uma semana āboaā ele diz conseguir seis ou sete clientes. Roberto Ć© negro e magro, com peitoral e abdĆ“men levemente definidos. O acompanhante explica que comeƧou a malhar hĆ” dois meses, pois a concorrĆŖncia criou a necessidade de ter um corpo mais āatraenteā: āMuita gente estĆ” percebendo a facilidade de conseguir dinheiro no aplicativoā.
Pergunto por que nĆ£o cobrar por hora, como outros que tive contato durante a pesquisa: āNĆ£o calculo o tempo. Imagina se o sexo dura cinco minutos? VĆ£o me pagar quanto? Geralmente os homens recorrem ao Grindr quando jĆ” estĆ£o com muito tesĆ£o. Na procura pelo sexo, eles veem ānudesā de outras pessoas e se masturbam. Na maioria das vezes o sexo Ć© rĆ”pido, porque jĆ” existe um tesĆ£o acumuladoā, explica.
Ele tambĆ©m diz que nĆ£o tem restriƧƵes de porte fĆsico, aparĆŖncia ou faixa etĆ”ria, desde que o cliente seja maior de idade. Seu pĆŗblico mĆ©dio tem mais de 30 anos e muitos sĆ£o homens casados. Segundo ele, Ć s vezes vĆ£o atĆ© com anel no dedo. āQuando eu saio, vou preparado para tudo. Porque eu preciso do dinheiro. Eu arrumo alguma forma de ficar excitado para transarā. Comento, nesse momento, que se ele fosse apenas passivo, o sexo seria mais fĆ”cil por nĆ£o necessitar do pĆŖnis ereto: āMas eu preciso sentir prazer mesmo que nĆ£o precise de ereçãoā, responde. āEu preciso me preparar mentalmente para sentir. O sexo Ć© uma coisa psicológicaā.
O sigilo dentro e fora de casa
Roberto mora com pai, mĆ£e e dois irmĆ£os. A famĆlia nĆ£o sabe da prostituição, mas acha bem estranho o fato de o filho nĆ£o ter emprego e sempre ter dinheiro. āApareƧo com roupas novas. Tem um cliente que me paga com perfumes da Hinode. Isso cria uma desconfianƧa, embora ninguĆ©m tenha perguntado. Uma vez, durante uma briga, minha irmĆ£ soltou: āE tu, que faz programa?ā. Mas acho que ela pensa que tenho um homem fixo, tipo um sugar daddyā, fala, rindo.
Ele se preocupa com a famĆlia, mas nĆ£o se importa muito com os possĆveis julgamentos de outros. āNĆ£o estou fazendo nada de erradoā, resume. āPor exemplo, lĆ” na favela existem meninos que ganham R$ 50 para vender uma bolsa com vĆ”rios papelotes de maconha. Depois, eles repassam o lucro para os traficantes. Eles vendem muito, entĆ£o existe uma renda. Mas eles estĆ£o correndo esse risco todo na rua. Eu ganho R$ 100 em uma noite e nĆ£o tenho risco de ser preso. Existem outros riscos, claro, mas eu nunca vou ver minha mĆ£e chorando na frente de uma delegacia ou de um presĆdio. Isso eu nĆ£o queroā, conta.
O perĆodo alugado (de duas horas) jĆ” se aproximava do fim, entĆ£o decidi encerrar questionando sobre futuro. Pergunto se Roberto pretende deixar a prĆ”tica algum dia: āSim. O meu maior sonho Ć© ser cabeleireiro. JĆ” trabalhei como assistente durante um ano e seis meses em um salĆ£o de beleza quando morava no interior. Ć uma coisa meio que nasci para fazer. Em 2020 vou tentar comeƧar algum cursoā, diz o michĆŖ, sem deixar de admitir que a vida de acompanhante tem sido bem cĆ“moda. āEu detesto ter rotina. Como trabalho pela noite, acordo na hora que eu quiser e monto meus horĆ”rios de acordo com minhas demandasā.
Em turnĆŖ

Após conversar com um jovem de periferia, imaginei que fosse o momento de procurar rapazes em Ć”reas nobres. Fui atĆ© Boa Viagem, bairro que tem um dos metros quadrados mais caros do Recife. Para os habituados ao Grindr, a Ć”rea tambĆ©m Ć© conhecida pela elevada quantidade de michĆŖs. Comecei a trocar mensagens com um rapaz chamado Yago (nome profissional). No perfil, seu nome era ā20cmGROSSOā. ā10 jatos de porra, apartamento sem porteiro, vĆdeos e fotos no WhatsApp. Aceito cartƵesā, dizia a descrição do perfil. Trocamos WhatsApp e agendamos uma conversa em seu flat, localizado na Avenida Domingos Ferreira.
Yago, no entanto, sempre desaparecia no dia da entrevista. Surgia no WhatsApp horas após o combinado. Na minha Ćŗltima tentativa, aguardei por ele sentado em uma espĆ©cie de hall do prĆ©dio. Após telefonemas fracassados, avistei dois rapazes brancos, fortes e tatuados entrando flats sobrepostos. Imaginei que aquele prĆ©dio de baixa estatura, para os padrƵes de Boa Viagem, pudesse ser residĆŖncia para mais garotos de programa. Abri o Grindr e lĆ” estavam os dois: 20CM ROLĆO GRS, de 21 anos, MLK PAU GROSS, de 19. Falei com o segundo, instigado principalmente pela idade. Expliquei que era jornalista e estava procurando personagens para uma reportagem sobre garotos de programa que usavam aquele aplicativo móvel. Ele aceitou conceder a entrevista e, assim, me direcionei para o seu flat.
Nicolas (nome profissional) estava só de cueca quando abriu a porta do pequeno apartamento, composto por uma cozinha e um quarto, onde ele recebia clientes. O cĆ“modo estava totalmente escuro, apenas com um ar condicionado ligado, entĆ£o pedi para que ele abrisse um pouco a cortina. Sentado na cama, o adolescente explicou que Ć© natural de Manaus, mas atualmente mora na cidade SĆ£o Paulo e tem passado a maior parte de seu tempo viajando āa trabalhoā. āEu passo perĆodos em cidades, sempre atendendo em algum lugar alugado. JĆ” fui para cidades como Curitiba, Porto Alegre, BalneĆ”rio CamboriĆŗ, Foz do Iguaçú e GoiĆ¢niaā, explica.
No momento da entrevista, ele estava em uma āturnĆŖā pelo Nordeste. Havia acabado de chegar de Natal e estava comeƧando um perĆodo no Recife. āAluguei esse flat por R$ 1500 para um mĆŖsā, revela. Boa Viagem foi sua escolha por ser um bairro nobre, mas tambĆ©m āturĆsticoā, que praticamente monopoliza o ramo hoteleiro de cinco estrelas no Recife. Entre os clientes, jĆ” colecionava turistas internacionais que aproveitavam o verĆ£o pernambucano.
"O Grindr Ć© melhor pois consigo conhecer as vizinhanƧas dos bairros em que fico hospedado.ā
Suas primeiras experiĆŖncias como garoto de programa foram atravĆ©s do Facebook, onde ele atualmente mantĆ©m 6 mil seguidores. āNĆ£o era uma conta especĆfica para isso, mas alguns caras me mandavam mensagens para pagar por sexo. Comecei quando ainda tinha 17. Eu era menor de idade, mas nĆ£o revelava, jĆ” que minha aparĆŖncia nĆ£o denunciava. Comecei a viajar quando cheguei aos 18. Depois tambĆ©m fui para sites especializados, atĆ© que acabei chegando no Grindr. Nas duas plataformas consigo levantar um dinheiro bom, mas o Grindr Ć© melhor pois consigo conhecer as vizinhanƧas dos bairros em que fico hospedadoā, comenta o garoto.
Comparado a Roberto, os valores de Nicolas sĆ£o mais elevados. Ele cobra R$ 150 por hora, caso seja ativo - sua posição de preferĆŖncia. Para ser passivo, sobe para R$ 200. āO preƧo aumenta se for um casal ou se o cliente deseja realizar algum fetiche. Eu realizo diferentes tipos de fetiches, menos sexo sem camisinha. Alguns clientes pedem, mas acho estranho e arriscadoā. Apesar dos perigos que a prĆ”tica impƵe, Nicolas estĆ” conseguindo concretizar seus desejos. Ele conhece diferentes cidades e novas pessoas, enquanto āvendeā prazer como financiamento de seu futuro. Em uma semana, revela conseguir R$ 3 mil ou R$ 4 mil, no mĆnimo. Parte do lucro estĆ” indo para uma poupanƧa.
Após quinze minutos de conversa, no entanto, suas respostas ficaram mais monossilĆ”bicas. āTĆ” bom, nĆ£o quero falar maisā, diz. Ele coloca sua mĆ£o no meu pĆŖnis e ativa um semblante galante, repetindo que nĆ£o quer mais falar. Expliquei que precisava de mais informaƧƵes e uma relação sexual seria antiĆ©tica naquele contexto. āEntĆ£o vamos terminar. O que mais vocĆŖ quer saber?ā, fala, alterando completamente de tom e expressĆ£o. Havia muito o que explorar em Nicolas, mas o constrangimento tomou conta do ambiente. Fiz algumas perguntas desajeitadas. Ele me deu respostas curtas, rĆ”pidas e com visĆvel impaciĆŖncia. Depois, disse que tinha um cliente chegando no flat e, por isso, eu precisava sair.
O michĆŖ me levou atĆ© a porta depressa. āPodemos nos ver depois do programa?ā, pedi. Ele assentiu com a cabeƧa e fechou a porta. Quando cheguei na calƧada, nĆ£o demorou um minuto para perceber que Nicolas havia me bloqueado. Por sorte, durante a conversa eu consegui o seu nome de usuĆ”rio no Instagram, onde ele tem quase 10 mil seguidores e se define como āmodeloā. Vi que chegou a ir Ć Praia de Porto de Galinhas, no litoral sul de Pernambuco, depois seguiu para Fortaleza (CE), dando continuidade Ć turnĆŖ nordestina.
"Até onde a moralidade resiste quando a ascensão da tecnologia acompanha a escalada do desemprego e da precarização?"
O assĆ©dio no flat de Nicolas nĆ£o foi o Ćŗnico episódio que me sobressaltou durante a procura. Cheguei a encontrar vĆ”rias pessoas procurando por drogas e rostos conhecidos que apontavam āaceitar cartƵesā em suas descriƧƵes. Outros nĆ£o eram adeptos da prĆ”tica em tempo integral, mas que de vez em quando alteravam seus nomes pois precisavam de um ātrocadoā. Isso me surpreendia nĆ£o apenas pela facilidade de oferecer programas, mas tambĆ©m pela banalização da prĆ”tica. āVocĆŖ Ć© GP?ā ou āCurte por grana?ā eram questionamentos que chegavam frequentemente em minha caixa de mensagens. E se eu quisesse? Indicaria meus preƧos, minhas restriƧƵes? Qual Ć© o preƧo de cada um? AtĆ© onde a moralidade resiste quando a ascensĆ£o da tecnologia acompanha a escalada do desemprego e da precarização?
As vitrines da sexualização
Durante uma recente viagem a SĆ£o Paulo, fiquei hospedado em um hotel próximo ao aeroporto de Congonhas, na Zona Sul. De forma didĆ”tica, um sujeito que parecia ter cerca de 50 anos me propĆ“s entrar em um esquema de prostituição masculina que atendia exclusivamente pilotos internacionais que se hospedavam na capital paulista. Instiguei o diĆ”logo com o objetivo de obter mais informaƧƵes e acabamos indo para o WhatsApp. āOs pilotos preferem entrar em contato comigo por uma questĆ£o de seguranƧa. TambĆ©m para evitar exposiçãoā, argumentou o homem, que se apresentou como SĆ©rgio. O valor por programa? US$ 100, cerca de R$ 400, por hora.
O āagenciadorā tambĆ©m disse que precisava de fotos dos rapazes, algo semelhante ao ābook rosaā. Por isso, me convidou para ir ao seu apartamento na Moema, bairro próximo do aeroporto, para uma sessĆ£o de āfotos sensuaisā. Expliquei que morava no Recife, o que impossibilitava minha participação no esquema: āE se pagĆ”ssemos suas passagens de aviĆ£o quando algum deles te escolhesse?ā, perguntou, insistindo na realização do book. Essa oferta acionou um alerta. Afinal, passagens de aviĆ£o extrapolam bastante a faixa de US$ 100.
NĆ£o pude ir ao apartamento na Moema por uma questĆ£o de seguranƧa, mas sempre me questionei quais seriam os reais interesses daquele homem com um jovem nordestino em viagem. Uma āpresa fĆ”cilā na selva de pedra paulistana. O que eu encontraria no apartamento na Moema?
No WhatsApp, a foto de SĆ©rgio mostrava um casarĆ£o de aspecto antigo e rodeado holofotes de luzes vermelhas. Mais tarde, descobri que era um famoso prostĆbulo do Red-Light District, a āzona de meretrĆcioā de AmsterdĆ£, na Holanda, onde as prostitutas danƧam em vitrines. A escolha da foto me pareceu apropriada. No Grindr, mesmo quando nĆ£o se vende sexo, Ć© como se todos estivessem danƧando em vitrines.