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Covid-19, Óleos nas praias e Brumadinho: o que essas emergências revelam sobre o Brasil?

Arte: Gabi Leal

“É um clima de tensão e medo. A gente sabe que vai chegar a hora de a gente se infectar”, conta a enfermeira de Caruaru, Agreste de Pernambuco, Lúcia*, 33 anos. Desde que o primeiro caso do novo coronavírus foi confirmado no Brasil, em 26 de fevereiro, os dias de trabalho dela têm sido difíceis. E de angústia. A rotina de quem atua em unidades de saúde vem mudando. As jornadas se intensificaram. A insegurança também. A pandemia da covid-19 trouxe à tona as condições precárias de atuação e a falta de preparo prévio do país para proteger quem está na linha de frente, vulnerabilizado, garantindo a segurança da população.



A chegada da nova doença no Brasil era esperada, seja pela previsão de especialista sobre a iminência de uma nova pandemia no mundo ou pelo deslocamento dos casos para o ocidente em 2020. Apesar disso, o país vem dando provas de que não se preocupou de forma preventiva em garantir o mínimo de condições viáveis de trabalho aos profissionais de saúde. As emergências ambientais e sanitárias recentes, como as manchas de óleo nas praias do Nordeste, mostram que a negligência com quem está no front é reincidente, o que justifica o medo de muitos profissionais em sair todo dia de casa, como acontece como Lúcia.


Quem esteve em episódios como a ruptura da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, e o derramamento de óleo, na costa do Nordeste, correu para a “guerra”. As entidades governamentais demoraram a chegar, quando chegaram. O suporte de proteção, também. Não fosse a rede de solidariedade que costuma se formar em torno das tragédias, as sequelas deixadas por esses episódios teriam sido maiores para quem ajudou a salvar vida ou proteger o meio ambiente.


Até hoje não chegaram EPIs suficientes

Entre os dias 30 de agosto e 2 de setembro, ambientalistas e integrantes de ONGs começaram a postar em redes sociais imagens de manchas negras atingindo bancadas de corais e a costa de praias como Paiva, em Pernambuco. “A gente foi acompanhando a mancha de óleo chegando aos outros estados, como Ceará e Rio Grande do Norte. Em alguns locais, começou a aparecer de forma mais volumosa e passamos a denunciar”, lembra o coordenador da ONG Salve Maracaípe Daniel Galvão.


Em outubro, dezenas de praias foram atingidas em sequência. Moradores de regiões pesqueiras e comunidades próximas correram para retirar, com as próprias mãos, toneladas de óleo. Voluntários começaram a ser chamados para ajudar e mutirões foram formados. Um dos primeiros aconteceu em Pipa, no Rio Grande do Norte, e juntou cerca de 50 pessoas. Em áreas como a praia de Itapuama, em Pernambuco, onde foi montada uma base de atuação, a estimativa é que mais de 1 mil pessoas tenham passado, por dia, durante 10 dias.


“Começávamos a trabalhar às 6h da manhã e terminávamos às 19h. Mesmo com as denúncias que a gente tinha feito antes, nem as prefeituras nem os governos estavam mandando Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Então, começamos a pedir, e algumas empresas, a doar. Até hoje, estaríamos esperando, se não fosse isso. A gente chegou a dar material de proteção para equipes do Exército e do Ibama”, lamenta Daniel Galvão.



Sem luvas, proteção facial, botas ou roupas apropriadas, dezenas de pessoas tiveram intoxicação. “Precisei ir ao posto, pois senti fortes dores de cabeça e náuseas”, conta Daniel Galvão. Até o fim de outubro, somente em Pernambuco, eram 66 casos semelhantes. O real impacto desse contato, contudo, só poderá ser estimado a longo prazo, pois o óleo contém uma mistura de hidrocarbonetos com potencial cancerígeno e é capaz de causar doenças como a leucemia.


Estima-se que cerca de 100 mil pessoas possam ter sido atingidas direta e indiretamente. De acordo com o último levantamento realizado pelo Ibama, no dia 19 de março de 2020, 11 estados, 130 municípios e 1009 localidades foram afetadas pela chegada do óleo. Desses, 135 permanecem oleadas, com vestígios do óleo. Isso significa que 13% das localidades atingidas, isto é, mais de uma em cada 10, permanece com até 10% da área contaminada.


Mesmo assim, no dia 20 de março, enquanto a pandemia do covid-19 avançava pelo país, o coordenador operacional do Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo (PNC) desmobilizou a coordenação unificada das equipes envolvidas com ações de resposta e monitoramento do Governo Federal. Para o Ibama, “a estrutura de coordenação tornou-se desnecessária desde o início do ano.” Ainda que a origem do poluente siga desconhecida.


O tempo entre a notícia e a ação é determinante

Arte: Gabi Leal

Para Daniel Galvão, no caso do óleo “houve uma demora grande para entender a gravidade da situação. Deveriam ter nos escutado quando dissemos que o óleo ia voltar. Aí, quando ele voltou, ficaram todos sem saber o que fazer. O governo não se preparou. Nem as prefeituras locais.” O mesmo pode ter acontecido diante da pandemia da covid-19, é o que temem os profissionais de saúde. Até o início de março, tudo parecia uma realidade distante do Brasil. E isso pode ter os deixado mais expostos ao risco.


Mais de 3,3 mil profissionais de saúde na Itália foram contaminados pelo novo coronavírus. Na Espanha, pelo menos 12% de todos os casos ocorreram entre eles. As listas de mortes de Itália, China e França contam com médicos entre as vítimas. No Brasil, já há relatos de profissionais da saúde que morreram por covid-19 em estados como Ceará e Goiás. Em Pernambuco, já são 227 infectados, segundo dados divulgados neste sábado (11), pelo secretário de Saúde, André Longo. “O pessoal está desesperado. Estamos recebendo muitas denúncias. Há relatos de que os trabalhadores estão sem EPIs ou trabalhando em esquema de racionamento”, explica a presidente do Sindicato dos Enfermeiros no Estado de Pernambuco (SEEPE), Ludmila Outtes, que chegou a sofrer ameaças após denunciar a situação.


Segundo ela, a situação se torna mais crítica pois é somada ao problema crônico de desabastecimento de insumos. “Com os cortes de verbas e sucateamento da saúde, algumas unidades públicas já tinham problemas, que se intensificaram. Até o Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Huoc), nossa principal referência em infectologia no estado, está passando dificuldade.”


Arte: Gabi Leal

A Associação Médica Brasileira (AMB) tem 2,5 mil denúncias, 64 delas em Pernambuco. As denúncias são de falta de EPIs em 40 unidades, além de uma Secretaria de Saúde, de 17 cidades. No Hospital Jailton Messias de Albuquerque, em Barreiros, a denúncia contabiliza falta de óculos, máscara, luva, gorro, capote e álcool em gel. O mesmo acontece no Hospital Regional do Agreste, em Caruaru, e na Unidade Hapvida da Caxangá, no Recife. Os relatos de falta de equipamento de proteção de Pernambuco se repetem em outros estados. No Rio de Janeiro, o Conselho Regional de Enfermagem conta com quase 130 denúncias.


Os enfermeiros de algumas unidades estão se organizando entre eles, fazendo cotas para comprar material. “Criamos uma estratégia de um fiscalizar o outro, para todo mundo ficar de olho para a higienização. Todo dia, um profissional da gente faz uma ronda nos setores para revisar o que está faltando e registrar em um livro”, contou Antônia*, 30, enfermeira de uma unidade pública da Zona Oeste do Recife.


O Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe) criou uma ferramenta virtual para monitorar o desabastecimento de EPIs. Por meio da resolução 3/2020, o diretor técnico das unidades de saúde do estado passou a ser obrigado a registrar na plataforma a ausência de materiais. “Nosso foco agora é proteger as equipes, para que elas possam atender a população de forma organizada e segura”, disse o presidente do Cremepe, Mário Fernando Lins. A AMB abriu um formulário para denúncias.


Não é só pela falta de EPIs

Ainda que todas as unidades de saúde brasileiras estivessem abastecidas, muitos profissionais de saúde permaneceriam receosos. A questão vai além da compra de EPIs, perpassa a garantia de um fluxo correto de atuação, para evitar a contaminação, e também o cuidado com a saúde mental dos profissionais. “O ideal é que os treinamentos tivessem ocorrido antes de os primeiros casos chegarem ao país, pois era óbvio que a pandemia chegaria aqui. A gente entende que a doença está sendo descoberta agora e é natural mudança, mas não há um suporte para o profissional agir”, alerta Ludmila Outtes.


O desgaste também é psicológico. “É muito angustiante ter que enfrentar isso sem saber como vai ser no nosso domicílio. Voltar para casa, para mim que tenho filho, está sendo muito difícil”, afirma Lúcia. A situação pode ser ainda mais complexa se considerado o perfil da saúde mental dos enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem brasileiros. Um estudo realizado pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da Universidade de São Paulo (USP) mostra que mais de 40% deles têm algum sintoma de estresse e depressão.

“Já recebemos relatos de profissionais que estão se afastando por síndrome do pânico, principalmente aqueles que estão nos hospitais de referência de Pernambuco para atendimento de coronavírus”, acrescentou Ludmila Outtes. Uma pesquisa de 2019, publicada pelo Medscape, mostra que a realidade de saúde mental comprometida também atinge os médicos. De acordo com o estudo, 44% dos médicos entrevistados tinham síndrome de Burnout e 4%, depressão.


Cuidado amplo com saúde mental podia ter sido legado

Foto: BMMG/Divulgação

Outro episódio recente de tragédia ocorrida no Brasil, o rompimento da barragem de Brumadinho, poderia ter deixado lições a serem utilizadas diante da pandemia. O país deveria ter mitigado de forma mais eficiente os traumas que o episódio iria causar. Mas não fez. A demanda por atendimento de saúde mental na cidade, por exemplo, cresceu 400%. A dor repercute ainda hoje, e os profissionais do front precisaram lidar com ela. Muitos dos quais permaneceram trabalhando mesmo com atrasos salariais.


Hoje integrante da comunicação do Corpo de Bombeiros de Minas, Thaíse Rocha, 33, atuava no planejamento de operações do batalhão de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, quando foi avisada do rompimento. Estava de férias e foi até o batalhão participar de um almoço, mas encontrou o espaço vazio. Soube que todos os colegas estavam a caminho da área rural de Brumadinho, onde meia hora antes uma barragem com rejeitos de processamento de minério havia rompido.


Foto: Capitã Thaíse/Arquivo pessoal

“Na hora arrumei um corta fio para poder arrombar meu armário, pegar minha farda e ir para lá”, relembra a capitã. Foram mobilizados para trabalhar todos os batalhões próximos - incluindo a porcentagem do efetivo de férias, como a capitã, e em folga. “No início, não fazíamos ideia se iríamos atender cinco, dez ou mil pessoas. Sabíamos que era grave, mas não havia como imaginar a dimensão”, confessa.


A preocupação de Thaíse no primeiro momento se dividia em duas necessidades que se assemelham ao dilema atual das equipes de saúde diante da pandemia: tentar resgatar o máximo de pessoas com vida e proteger a integridade de sua equipe. Para isso, a capitã precisava ter certeza de quem estava trabalhando, se todos tinham o equipamento necessário para agir em segurança e definir estratégias para dispor os bombeiros em campo de uma forma que permitisse saber onde estavam indo em uma área que chegava a 10 km de extensão.


Na fase mais intensa das buscas, 500 bombeiros trabalhavam a cada dia, numa jornada que iniciava com os primeiros raios de sol e só se encerrava quando a ausência de luz natural já não permitia qualquer ação. Além de toda a tensão que a situação implicava, os profissionais precisaram lidar ainda com avisos sobre possíveis novos rompimentos, em barragens vizinhas, e o risco de contaminação por conta da natureza dos rejeitos.

Os bombeiros contavam com os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) básicos, mas as especificidades do cenário demandaram outros aparatos. "Tanto pelo dano que foi ocorrendo aos nossos, como os roupões de neoprene que rasgavam e ficavam completamente inutilizáveis, quanto por demandas novas, como atendimento médico para militares e para os cães, maquinário, localizadores, rádios...", detalha Thaíse.


O contato com a lama repleta de substâncias químicas e tóxicas, como metais pesados, fez com os bombeiros envolvidos nas operações precisassem tomar medicamentos para prevenir possíveis intoxicações antes mesmo de iniciarem as operações. Todos os que trabalharam na ocorrência tiveram acompanhamento médico contínuo até que fosse descartada qualquer doença ou alteração nos exames, além de atendimento psicológico. “A gente tinha a preocupação de tentar não se envolver tanto com a dor das famílias para não nos tornarmos vítimas também, porque quem tem que fazer aquele trabalho ali é a gente.”


Lidar com as famílias também foi um desafio para o sargento Allan Azevedo de Oliveira, 33. “Fiquei bem assustado com tudo, o sentimento de ajudar se misturava com uma tristeza grande pela forma como aconteceu.” Em 32 dias de trabalho, Allan perdeu as contas de quantas vezes ouviu a pergunta: “Você encontrou o meu filho?”. “Uma das coisas que mais me marcou foi um senhor, pai de uma das vítimas, que chegava todos os dias, no mesmo local, às 7h da manhã, para acompanhar as buscas. Ia a cada viatura ou helicóptero que pousasse perguntar se o filho dele tinha sido resgatado”, conta.


Foto: Sargento Allan/Arquivo pessoal

Lidar com a tragédia nem sempre é fácil, analisa. “Tem um momento em que a gente tem que se afastar e chorar mesmo. Pior de tudo é ver os familiares que ainda não conseguiram receber a confirmação da morte dos parentes”, completa Allan. Um ano e três meses após o colapso da barragem Mina do Feijão, os impactos social, ambiental, humano e econômico ainda ecoam no dia a dia de todos os atingidos. A investigação continua sendo feita pela Polícia Federal, que prevê a conclusão do inquérito para o mês de julho. A Vale, seu ex-presidente, Fábio Schvartsman, a empresa de consultoria TÜV SÜD e mais 15 pessoas foram denunciadas à justiça pela Polícia Civil e pelo Ministério Público de Minas Gerais por homicídio doloso (quando há intenção de ou se assume o risco de matar) e crime contra o meio ambiente.

A solidariedade se sobrepõe ao poder público

Episódios como o de Brumadinho e do óleo mostram que o que acaba chegando antes para salvar quem está no front no Brasil é a solidariedade. A cada dia de operação concluído, Allan e os colegas precisavam passar pelo setor de descontaminação das roupas, que ganhou reforço de moradores voluntários. Um mutirão com mais de 30 pessoas se revezava 24 horas por dia para lavar, em 14 máquinas, o fardamento usado pelos militares. “Se não fossem eles, não teríamos tido tanto sucesso logo de início. Trabalhar com roupa molhada torna tudo muito difícil, e andar dois metros naquele tipo de lama já é bem complicado.”


Diante da ausência de EPIs e das incertezas provocadas pela pandemia de covid-19, os profissionais de saúde têm contado com essa solidariedade para garantir a proteção necessária neste momento. Os hospitais Correia Picanço, Oswaldo Cruz, Tricentenário e Santa Casa estão com campanhas abertas, em Pernambuco, para arrecadar EPIs. O Hospital de Câncer, cujos pacientes são grupo de risco, também. Com a experiência de ter trabalhado meses tentando ajudar um local atingido por uma urgência e ter contado com a solidariedade nesse momento, o coordenador da Salve Maracaípe Daniel Galvão, contudo, ressalta a importância de não se apoiar no discurso do heroísmo nestes momentos e cobrar ao poder público. “É preciso entender que a gente é herói, mas se machuca também.”


*Os nomes dos entrevistados foram alterados para preservar a identidade

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