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Em dois anos, interior do NE perde quase metade das bolsas de mestrado

Reportagem: Bruno Vinícius / Dados: Paulo Veras

Ilustração: Iasmim Vieira

Quando assumiu, em 2019, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, chegou a justificar cortes nas universidades e institutos federais porque "promoviam balbúrdia". Dois anos depois, essas instituições têm sofrido duros baques em suas estruturas, entretanto, o alvo mais atingido tem sido as universidades localizadas no interior do Nordeste. Longe do foco midiático, elas perderam quase metade de suas bolsas de mestrado - mesmo em início de implementação dos seus cursos.


Este dado faz parte um balanço exclusivo pela Agência Retruco, via Lei de Acesso à Informação (LAI), em que apurou os dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior nos últimos 10 anos. Eles guiam a primeira reportagem do especial "Projeto Efeito Desmonte", que mostrará nas próximas duas semanas como o governo federal tem interrompido um ciclo de duas décadas de avanços na interiorização do ensino superior do Nordeste. Este projeto foi vencedor do 2º edital de jornalismo de educação, promovido pela Jeduca em parceria com o Itaú Social.


Cortes encerram ciclos de avanço no interior


Em 1991, ingressar numa faculdade era um tanto distante para quem morava no Crato, na região do Cariri cearense. Na realidade, acabar o ensino médio já era um desafio encontrado na cidade. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 18,1% da população acima de 18 anos do município concluía a educação básica naquela época. Vislumbrava a universidade quem tinha dinheiro. E quando fazia, havia de se mudar para Fortaleza, a 500 quilômetros dali, ou alguma capital de outros estados do Nordeste. Ou seja, não existia qualquer retorno científico ou socioeconômico para o local.


Entretanto, o cenário mudou a partir da interiorização do ensino superior- frutos de políticas públicas federais que incentivaram as regiões do semiárido do Nordeste a partir dos anos 2000. Com a expansão da Universidade Regional do Cariri (URCA) e da criação da Universidade Federal do Cariri (UFCA), o Crato passou a ter retorno da ciência e da pesquisa desenvolvidas ali mesmo. Campo acadêmico construído, justamente, por filhos de quem nunca teve acesso à educação básica.



Livia Maria, de 23 anos, foi a primeira da família (junto com o irmão) a ingressar na pós-graduação. Filha de pais que nem chegaram a completar o ensino fundamental e mãe de um filho de 4 anos, viu no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional Sustentável (PRODER) da UFCA a oportunidade de dar continuidade à vida acadêmica. Bacharel em direito pela URCA, ela teria que se mudar para Fortaleza ou alguma outra cidade distante para seguir na área desejada caso não existisse esse curso.


Livia passou em quinto lugar no programa de mestrado em 2020. A colocação lhe deu direito a uma bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - o que garantiria a sua manutenção no mestrado sem precisar conciliar trabalho e cuidado com o filho. Em 6 de abril do mesmo ano, quase um mês depois do resultado, ela recebeu um e-mail do PRODER avisando que a Capes havia cortado metade (8 de 16) das bolsas do programa. Incluindo a dela.




Sem a possibilidade de bolsa, Livia Maria acabou desistindo do curso para advogar. Sem o dinheiro, não tinha condição de seguir carreira acadêmica. Na realidade, ela não foi a única. Foram 484 bolsas de mestrado cortadas nas universidades do interior nordestino, o equivalente a 40% dos repasses a elas. Fruto do impacto da portaria 34 da Capes, de abril de 2020, que redistribuiu os recursos em torno de um método meritocrático - os programas com notas mais altas passaram a receber mais bolsas que aqueles com avaliação mais baixa.



A Retruco teve acesso aos repasses, através da Lei de Acesso à Informação (LAI), com todos os dados das universidades brasileiras de 2010 a 2021. O auge dos investimentos da Capes foi em 2015, porém nos últimos anos os investimentos na pesquisa têm caído drasticamente - chegando na berlinda com o governo Bolsonaro. Em meio a fortes discursos contra a ciência e educação, a pesquisa feita no interior do Nordeste chegou a quase metade do que era feito há dois anos, quando ele assumiu. Em 2019, eram 1180 bolsas, hoje são 633 repasses aos cursos de mestrado da região.


Analisamos os dados das nove universidades que possuem sede fora das capitais nordestinas: Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Universidade Federal do Cariri (UFCA), Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e Universidade Federal do Oeste Baiano (Ufob), Universidade Federal da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Universidade do Delta do Parnaíba (UFDPar), Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Utilizamos a quantidade de bolsas de mestrado, porque a maioria não possui programas de doutorado. A UFSB aparece com bolsas apenas em 2021 e do Delta da Paraíba não conta com repasses no sistema.



Entendendo os repasses


Os cursos de mestrado e doutorado são conceituados a partir de sua produção científica, em uma avaliação que tem as notas 3, 4, 5, 6 e 7 como termômetros. Os programas mais bem avaliados têm desenvolvimento científico semelhante aos melhores cursos de pós-graduação do mundo. Contudo, para chegar em tal nível, precisa-se de investimentos, infraestrutura e políticas públicas voltadas para a pesquisa desenvolvida nesses programas.


E tempo também. Além dos investimentos necessários, o desenvolvimento científico não se dá no mesmo ritmo que o mercado: necessita-se de resultados, amostras e as primeiras comprovações para serem publicadas em revistas científicas e outros periódicos. Uma realidade que ainda precisa ser alcançada pela maior parte dos programas de pós-graduação do interior do Nordeste, ainda avaliados com notas 3 e 4. A maior parte deles teve uma implementação muito recente, de duas décadas para cá, precisando de estímulos para se consolidar científicamente.


Desenvolvimento comprometido


Programa de Desenvolvimento Regional Sustentável. UFCA/Divulgação

É o que aconteceu com o Programa de Desenvolvimento Regional Sustentável da UFCA, o qual Livia Maria pediu desvinculo. Por ter apenas nota 3, o curso de mestrado teve metade das bolsas cortadas pela Capes, interrompendo um ciclo de três linhas de pesquisa: meio ambiente; saúde, estado e sociedade; tecnologia e modelagem.


O programa foi criado há apenas uma década. Tão recente quanto a Região Metropolitana do Cariri, composta por nove municípios do sul cearense. Em 2009, o governo do estado oficializou a criação da RM para diminuir as desigualdades em relação à Fortaleza, localizada no litoral, e atrair investimentos para a região - já que é uma área estratégica ladeada pelos estados de Pernambuco, Paraíba e Piauí, além de estar distante a 600 km de Fortaleza e Recife.


A RM do Cariri é composta pelos municípios de Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha, Jardim, Missão Velha, Caririaçu, Farias Brito, Nova Olinda e Santana do Cariri, que têm uma população conjunta de 601 817 habitantes. E sua criação, além de impulsionar o crescimento populacional, acarretou no desenvolvimento econômico. Por isso, a idealização do PRODER se deu pelo estímulo à formação de docentes e pesquisadores que trabalhassem a intersecção das questões relacionadas ao desenvolvimento metropolitano: o desenvolvimento científico e tecnológico em harmonia com o meio ambiente e respeito aos moradores locais.


"Esse programa vem justamente para dar visibilidade às potencialidades da Região Metropolitana do Cariri. Todos os projetos de pesquisa têm esse foco de dar visibilidade para as potências da região do Cariri e contribuir com seu fortalecimento e seu fomento, tanto no ponto de vista econômico, social, cultural, político e também ambiental e de saúde", explica Lívia, que hoje é mestranda do programa de pós-graduação em direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), graças ao ensino remoto.


Elitismo e desigualdades regionais


A retirada de recursos da região facilitará o processo de desigualdade regional e impulsionará o elitismo na ciência, de acordo com as entidades ligadas à defesa da ciência brasileira. É como se houvesse a possibilidade do Crato voltar aos mesmos índices de três décadas, enquanto regiões como o Sudeste seguissem ritmo pleno de crescimento por serem abastadas historicamente por recursos federais.


Um levantamento da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) mostra que o Nordeste passou de 15.386 estudantes beneficiados, em 2019, para 14.266 bolsas, em 2020, sob a nova portaria, porque a maior parte dos programas conceituados em 3, 4 e 5 estão localizados na região. Por outro lado, o Sudeste - região mais rica do País -, passou a concentrar mais concessões, tendo um crescimento de 3 mil bolsas para cursos de mestrado e doutorado de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo.


O diretor de comunicação da ANPG, Rogean Vinícius, explicou que essa assimetria na distribuição pode causar impactos ainda mais fortes na pesquisa brasileira, como se houvesse um processo de "desertificação da ciência". "Sempre houve uma demanda por transparência na distribuição de bolsas na CAPES, que era algo que os movimentos vêm lutando há muito tempo. Tudo se resolvia de maneira política. Mas consideramos que essa portaria fragmentou e ampliou as desigualdades", explica.


"Os programas 6 e 7 são de padrões internacionais, então eles recebem mais bolsas. À medida que se têm mais estrutura, mais pesquisadores e professores envolvidos, você cria condição para aquele programa subir de nível. Isso acaba retroalimentando as desigualdades. E uma das coisas que a gente pauta muito é que essa régua é muito desigual: um programa de nível 4 para se manter nesse nível ele gasta uma energia maior para se estruturar do que os que estão acima. Por isso, esses cortes foram perigosos", aponta Rogean.


O movimento tem trabalhado em conjunto com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), para revogar os impactos trazidos pela portaria da agência nacional. Inclusive, o Ministério Público Federal MPF) entrou com um inquérito para a apurar a mudança da agência, através da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio Grande do Sul. O procurador Enrico Freitas chegou a citar no documento que bolsistas se mudaram de cidade para obter bolsas e ficaram em situações de vulnerabilidade perante a pandemia do coronavírus, que naquele momento estava no início no País.


"Precisamos olhar as intersecções. Há bolsistas que, felizmente, não dependem exclusivamente para sobreviver. Mas uma mulher negra, pobre e com filho depende desse suporte para seguir a vida acadêmica", diz Lívia Maria.

O temor dos pós-graduandos é que a portaria agrave ainda mais a situação de mestrandos e doutorandos. No País, há mais de 300 mil matriculados nesses programas, porém as agências de pesquisa federais disponibilizam pouco mais de 80 mil bolsas, que não sofrem correção de valor há seis anos. O que também não garante nenhum direito trabalhista, como férias e contribuição previdenciária, já que o nosso sistema não os reconhece como trabalhadores.


O desmonte na universidade mais afetada do Nordeste


A notícia veio como um baque. Construída para explorar os potenciais do agreste, sertão e borborema paraibanos, a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) foi a instituição mais prejudicada do Nordeste com os cortes da Capes. De uma só vez, 229 bolsas da instituição foram retiradas - o equivalente a quase 40% do que foi repassado em 2019. Entre os 46 cursos oferecidos pela IES, apenas o mestrado em ciência política e o doutorado em engenharia civil e ambiental ganharam cotas.


Embora seja um dos únicos três programas no País com nota máxima na área, o doutorado em energia elétrica também sofreu com cortes da agência fomentadora. No ano passado, a universidade chegou a pedir uma e após pressionar conseguiu recuperar 106 concessões. Entretanto, cinco cursos permaneceram sem nenhum repasse: os mestrados em ciências florestais, física e história, e os doutorados em engenharia de processos e engenharia química.



Departamento de Engenharia Química teve todas bolsas cortadas. UFCG/Divulgação

Segundo o pró-reitor de pós-graduação da UFCG, Benemar Alencar, houve uma dura penalização para a universidade, porque a maior parte dos cursos oferecidos por ela ainda são muito recentes. "Não tem como colocar um programa de Patos na mesma balança que um da USP, que tem estrutura e tempo de investimentos há mais tempo. Todo curso no início começa com nota 3 e a avaliação acontece a cada quadriênio. Como se faz para um curso ter mais de nota 4 se ele não teve tempo de ser avaliado", afirma o pró-reitor.


O valor repassado para a pesquisa na Universidade Federal de Campina Grande é totalmente desproporcional ao seu crescimento nos últimos anos. A instituição caiu de 767, em 2015, para 285 bolsas concedidas pela Capes em 2021. Este número pode ficar ainda pior, porque 74 são de empréstimo, com possibilidade de serem cortadas ou migradas quando os bolsistas forem desligados.



"Se compararmos com 2013, com correção da inflação, temos um terço do orçamento neste ano. Totalmente incoerente com o crescimento da universidade, que praticamente dobrou o número de cursos de pós-graduação nesse tempo", enfatiza Benemar.


Nova portaria diminui perdas, mas não recupera bolsas totais


O cenário só não foi mais devastador para a UFCG e outras universidades do interior, porque a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior publicou a portaria 28, em fevereiro, que altera a forma de distribuição anterior.


Ao invés de utilizar só as notas dos cursos de mestrado e doutorado, agora se considera a titulação média (número de diplomados) de suas áreas correspondentes, a própria nota deles e o incremento do peso sob o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade do o qual o programa está inserido.


O intuito é que os cursos localizados nas cidades brasileiras mais pobres não sofram tantos cortes, por possuírem cursos com notas mais baixas, quanto na portaria anterior. "A ênfase é o mérito acadêmico indicado pela nota do curso, mas é também levado em consideração o tamanho do curso, pela quantidade média de titulados, bem como um fator de ponderação, com o objetivo de reduzir as assimetrias observadas em municípios com menores índices de desenvolvimento", disse Benedito Aguiar, presidente da Capes, em material divulgado pela agência.


Apesar do discurso institucional, pouca coisa se altera para as universidades nordestinas. Com base na tabela disponibilizada, seis IES do interior ainda perderam 71 bolsas em relação ao ano passado. E ainda correm o risco de perder mais 101, pois estas se configuram em regime de empréstimo - não pertencem definitivamente a elas.


Cenário incerto para a ciência


Com discursos e cortes constantes, o cenário da ciência nordestina é incerto em meio a crises que estão surgindo para a região. Uma forma de compensar as retiradas do governo federal é através do fomento das agências estaduais de pesquisa, que vêm ampliando os recursos, principalmente depois da criação do Consórcio Nordeste. "Um ponto relevante é de que a Fapesq (agência da Paraíba) teve investimentos nas bolsas nos últimos anos", diz Benemar Alencar.


Isso mostra como a região vem atuando de forma isolada frente aos desafios. O primeiro deles foi o derramamento de óleo nas praias do Nordeste, o qual governadores ficam sem apoio do governo federal em 2019. Logo depois, veio a pandemia do coronavírus, que agravou a situação em algumas cidades que já estavam afetadas pelo desastre ambiental.


As incertezas põem em riscos até projetos consolidados. A doutora em biotecnologia e técnica de laboratório na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), Alane Pains, afirma que a pandemia agravou ainda mais a ciência produzida no local. "Fazemos pesquisa em laboratório que fica no campus de Ciências Agrárias, que fica um pouco distante, necessitando de transporte até lá. Em alguns momentos, não tinha ônibus", conta.


Em sua equipe, há bolsistas de iniciação científica, mestrado e doutorado. Duas grandes pesquisas são realizadas: há um estudo com biotecnologia da reprodução animal, chamado de ovário artificial; e outra com linhagens de medicamentos e extratos de plantas que funcionam contra os efeitos da quimioterapia no tratamento do câncer.


"A primeira é super importante para a região, porque estamos ajudando uma área que como a sua base econômica de caprinos e ovinos. O segundo já diz tudo: hoje temos uma quantidade muito grande de mulheres desenvolvendo tipos de câncer no ovário e a pesquisa busca amenizar esses efeitos".


No laboratório, uma bolsa de pós-doutorado foi perdida e recursos foram retirados para desenvolver experimentos e questões básicas de estrutura. "Recebemos diversos financiamentos. Com os projetos amadurecendo, fica mais fácil com o tempo conseguir mais financiamento para pesquisas. Neste ano, não recebemos metade dos nossos recursos da Capes e avisaram que não há previsão de retorno desse dinheiro. É um cenário preocupante: os recursos ficam cada vez maiores e os custos só crescem. Temos reagentes comprados fora do País e eles custam cada vez mais caros", pontuou Alana.


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