Coluna por Amanda Borba
Não fosse a emergência do coronavírus no mundo, 2020 estaria na agenda da Organização Mundial de Saúde (OMS) como o ano-desafio para o combate à depressão e ao suicídio - problemas que normalmente vêm à tona na mídia no mês de Setembro (Setembro Amarelo), mas que anseiam por atenção o ano inteiro.
Dados da OMS revelam que o suicídio, hoje, está entre as dez principais causas de morte no mundo e que há registros de tentativas de tirar a própria vida entre crianças de 5 anos. O que leva uma criança de 5 anos a por fim ao seu sofrimento retirando a própria vida é uma questão que merece mais do que nossa atenção. É preciso refletir nos condicionantes desse fenômeno social.
Os mesmos registros da OMS mostram que cerca de 70% dos suicídios no mundo ocorrem em países subdesenvolvidos, o que sinaliza a relação direta entre as condições de vida e a saúde mental da população. Os determinantes sociais impactam diretamente na saúde mental das pessoas, podendo produzir sofrimento psíquico. As condições familiares, sociais, laborais, em suma, as condições de vida do sujeito influenciam diretamente na saúde em sua concepção ampla.
É importante entender que o chamado sofrimento psíquico nasce na relação com o outro, é uma resposta do sujeito dentro de um contexto social, afetivo, relacional, histórico. E por isso mesmo cada indivíduo simboliza o sofrimento de uma forma singular, que parte de suas próprias experiências relacionais. A vida se constitui na relação das pessoas, na produção social dos seus modos ser, de existir.
A existência do indivíduo é atravessada por questões como: exposição ou não à violência (física ou psicológica), opressão, condições de trabalho, condições familiares, exploração econômica, falta de acesso a direitos fundamentais – como a educação, cultura, saúde, lazer. Apenas um ou o conjunto desses fatores pode desencadear um desordenamento psíquico que leva ao sofrimento intolerável, que é a mola propulsora do planejamento, da tentativa ou até da consumação do suicídio. A crise, a dor e o sofrimento fazem parte da condição humana. Mas em alguns momentos há uma desorganização maior de nossa vida.
O suicídio é segunda principal causa-morte entre indivíduos de 15 e 29 anos (OMS). Muitos pesquisadores têm encontrado resultados que vinculam esses dados ao contexto de sociedade que promete ao jovem felicidade, realização plena e ausência de sofrimento sustentados pela lógica da meritocracia, da competitividade e do sujeito “empreendedor de si” - o sujeito neoliberal. Entretanto, mesmo cumprindo todas as etapas predefinidas por esse “modelo de sucesso” (formação básica escolar, graduação, às vezes, pós-graduação, experiência no mercado de trabalho etc.), devido ao contexto político e econômico de seus países, muitos jovens não alcançam as expectativas criadas e deparam com frustração e ausência de sentido, que, muitas vezes, levam à culpabilização e ao sofrimento psíquico extremo.
Pesquisas apontam, ainda, para os chamados fatores de risco e fatores precipitantes. Por exemplo, os homens se matam três vezes mais do que as mulheres, embora as mulheres tentem mais o suicídio do que os homens. Mas também é sabido que, entre os indivíduos que buscam ajuda, as mulheres são maioria. Esses dados, no mínimo, colocam a pulga do patriarcalismo atrás das nossas orelhas. Ainda aparecem como fatores precipitantes o estado civil, o desemprego, situações de epidemia, o preconceito, entre outros. Cresceu o número de tentativas de suicídio na pandemia do coronavírus, por exemplo (esses números foram registrados pelos atendimentos emergenciais feitos pelo SAMU).
É evidente que a melhor forma de prevenir o suicídio é prevenir situações de risco que levam ao suicídio. Prevenir é retirar o sujeito do grupo de risco. E quem deve agir nesse sentido? Necessariamente são os profissionais de saúde?
Não. O Setembro Amarelo, campanha criada em 2014 pelo Centro de Valorização da Vida (CVV), é justamente uma tentativa de convocar à sociedade a participar, a se ver como lugar de acolhimento. Lugar, inclusive, mais próximo de quem sofre, que está no mundo da vida e não, necessariamente, em atendimento médico, em um Capes, no hospital ou em uma sessão de terapia.
Esse mês de combate e prevenção ao suicídio convida as pessoas a ampliar a escuta, a acolher e a fomentar espaços de discussão sobre o tema, a fim de desenvolver cidadãos agentes interventivos, de suporte. Estamos falando de uma sociedade que precisa desenvolver a resiliência e a empatia. Precisamos, por exemplo, rever nossa postura de interesse em relação ao outro.
Quando você pergunta “tudo bem?”, está mesmo preparado para escutar qualquer resposta? Se o interlocutor responde “não” e imediatamente você responde que “vai ficar tudo bem”, encerra-se o assunto, fecha-se um canal de comunicação. Quem escuta não apenas acolhe, mas também tem a oportunidade de identificar a possibilidade de ajudar, mesmo que não seja uma ajuda direta, mas um aconselhamento que direcione a pessoa a um atendimento profissional, por exemplo. E as possibilidades de itinerários terapêuticos são diversas.
Podemos ficar atentos a alguns sinais. É comum que pessoas que pensam em tirar a própria vida comunicarem frases como “não suporto mais viver”, “eu queria sumir” etc. Frases tão comuns podem prenunciar uma intenção que pode evoluir para uma segunda fase do comportamento suicida, que é a tentativa. Outro sinal de alerta é a autolesão, que vai desde a utilização de objetos cortantes para marcar o próprio corpo ou queimaduras intencionais, até a ingestão de substâncias tóxicas. Alguns estudiosos apontam também a hipertrofia muscular como um tipo de autolesão muito comum entre jovens.
Diversos atores acolhedores podem estar envolvidos na prevenção do suicídio. Para citar alguns: os médicos da família, os agentes comunitários de saúde, os enfermeiros, os psicólogos, os vizinhos. O mais importante é ter em mente que não devemos restringir nosso olhar ao evento isolado do suicídio; precisamos, pelo contrário, nos voltar a uma abordagem mais ampla do assunto. Hoje, por exemplo, fala-se em “posvenção”, que seria o suporte àqueles que foram impactados pelo suicídio.
Devido à pandemia do coronavírus, estamos experimentando uma relação de aproximação com o tema da morte, embora historicamente o assunto seja um tabu nas sociedades ocidentais. Não à toa, as pessoas têm dificuldade de conceberem a possibilidade de um sofrimento tamanho que resulte numa tentativa de tirar a própria vida. Isso explica porque o indivíduo que age contra a vida dele mesmo ser comumente – e pejorativamente – tachado de louco.
Todavia, não há outro caminho: para entender o suicídio e as motivações que levam a este é preciso criar uma intimidade com o tema - um verdadeiro desafio para uma sociedade que não quer nem ouvir nem falar sobre a morte. (O que é de se admirar em um mundo ocidental gerido pela necropolítica).
O suicídio é um problema multifatorial. Não é possível prever quem irá se matar, mas é possível identificar sinais individuais de desconexão com a vida, desse sofrimento insuportável. É possível também se aproximar do tema, buscando quebrar tabus e se munir de informações que nos tornem aptos a ser suporte. Em uma sociedade que prega o individualismo, a verdadeira revolução é construir vínculos, abrir canais de comunicação, de acolhimento e, sobretudo, de escuta.
*Os dados foram retirados do site do Conselho Regional de Psicologia, da OMS e do portal do Ministério da Saúde do Brasil.
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