Reportagem: Matheus Rangel
Em 1992, Wladimir Reis se despediu do namorado em um caixão fechado com pregos e selado com uma camada de cal. A causa da morte foi uma pneumonia agravada pela Aids, o estágio mais avançado da infecção por HIV. Em uma época em que pouco se compreendia sobre o vírus, suas consequências e possibilidades de tratamento, o diagnóstico era tido como uma sentença de morte. “Disseram: ‘não chega perto que ele morreu de aids’. O gerente do cemitério falou que ele não poderia ficar nem dois meses ali, pelo risco de contaminar outras pessoas. A partir daí, comecei a sentir o preconceito”, lembra Wladimir, que se descobriu soropositivo na ocasião. “Foi como um atestado de óbito”.
Quase 28 anos depois, muita coisa mudou. Os diagnósticos se tornaram mais rápidos, novos medicamentos aumentaram a qualidade de vida dos pacientes e o Brasil se tornou uma referência mundial no combate ao HIV, sendo o primeiro país a oferecer acesso universal ao tratamento por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). A sorologia positiva deixou de ser sinônimo de morte, mas nem os avanços na medicina foram suficientes para curar o preconceito estrutural construído em torno da doença.
Enquanto os índices globais de novas infecções e mortes decorridas de complicações da Aids caem, no Brasil, os números voltam a preocupar. O país registrou um aumento de 21% no número de novos casos entre 2010 e 2018, segundo relatório da UNAIDS, agência da Organização das Nações Unidas (ONU), especializada na epidemia. Novos dados divulgados pelo Ministério da Saúde na última sexta-feira (29) mostram que o número de brasileiros que vivem com o vírus saltou de 866 mil, no ano passado, para 900 mil - desses, 15% (135 mil pessoas) não sabem que foram infectados.
No Dia Mundial do Combate à Aids, comemorado neste 1º de dezembro, profissionais e ativistas da causa positiva alertam para como as estruturas de prevenção, acolhimento e tratamento de pacientes estão enfraquecidas e as consequências dessa defasagem para a sociedade.
Hoje, aos 58 anos, Wladimir Reis é o coordenador do Grupo de Trabalhos em Prevenção Positivo (GTP+), organização não governamental que atua no Centro do Recife auxiliando pessoas em situação de vulnerabilidade econômica, a população LGBT+, profissionais do sexo e dez unidades prisionais no estado de Pernambuco, tanto na frente de prevenção quanto na de acolhimento e tratamento em casos de diagnósticos positivos.
“As pessoas que não têm as informações necessárias não têm acesso à prevenção e ao tratamento adequados. Os recursos e a política de prevenção ao HIV estão sendo dispersadas através de estratégias que não contribuem efetivamente para o combate [de novos casos]”, acredita ele.
Em maio deste ano, um decreto presidencial alterou a estrutura do departamento responsável pelo combate ao HIV no Ministério da Saúde: o Departamento de IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis), Aids e Hepatites Virais passa a se chamar Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis e a palavra Aids desapareceu das redes sociais do Governo.
“Nós estamos vivendo uma epidemia. A América Latina ampliou a detecção de novos casos, mas percebemos que isso ocorreu em maior número no Brasil. Aqui, as pessoas estão vulneráveis. Estamos falando das populações mais jovens, de uma população de cor. A desigualdade contribui para a epidemia e para a não perspectiva de prevenção”, completa. O número de casos de Aids cresceu 7% na região, mas a conta teria fechado em uma redução de 5% sem a parcela do Brasil no total, ainda segundo relatório da ONU.
Para além de mudanças estruturais nos setores da Saúde Pública do país, os discursos conservadores reverberados na área da educação podem surtir efeitos ainda mais profundos e complexos no panorama geral do HIV no Brasil. Conforme alerta a psicóloga Bethania Cunha, que há quase 30 anos atua na área de sexualidade e infecções sexualmente transmissíveis, “existe todo um engajamento político e religioso do retrocesso e as instituições não dão conta porque é algo de formação cultural da sociedade”.
Em 3 de setembro, Jair Bolsonaro anunciou que solicitou ao Ministério da Educação um projeto de lei que banisse das escolas o que ele se refere como “ideologia de gênero”, isto é, qualquer assunto relacionado à sexualidade ou diversidade sexual. “Determinei ao MEC, visando princípio da proteção integral da criança, previsto na Constituição, preparar PL que proíba ideologia de gênero no ensino fundamental”, disse o presidente no Twitter.
“Algum tempo atrás, e agora é um fenômeno que vemos novamente, estamos vendo pais que arrancam folhas dos livros de ciências dos filhos porque há imagens ou desenhos biológicos de órgãos sexuais masculinos e femininos, assim como professores estão sendo rechaçados por abordarem esse tema [educação sexual]. Então o grande lance é a gente pode trabalhar fazendo frente a essa onda de retrocesso que estamos vendo. O maior retrocesso é educativo”, argumenta ela.
Atuando na Clínica do Homem Recife, mantida pela Aids Healthcare Foundation (AHF) no Brasil, Bethania lida todos os dias com diagnósticos positivos e é o primeiro contato dos pacientes com a nova realidade. “O resultado reagente do teste mexe com muitas coisas, coisas que a pessoa aprendeu lá atrás [durante a infância e adolescência]. Vêm os receios de ‘o que eu vou dizer para a minha família?’, ‘todo mundo vai saber agora’. Ainda há o pensamento de que a pessoa vai ser rejeitada”, comenta.
A psicóloga lembra que os avanços nos tratamentos ao longo dos anos facilitaram o processo de aceitação dos pacientes: “Em muitos casos, é quando a pessoa começa a crescer. É um momento muito terapêutico. É uma hora de informação, sim, mas também de escuta, para trabalhar aquilo que fragiliza. Porque, ao receber o diagnóstico, a pessoa fica frágil. Mas ela não precisa sair dali frágil, esse momento é totalmente superável, especialmente hoje, em que existe a possibilidade de ficar e permanecer saudável com apenas dois comprimidos por dia”.
A ativista e integrante do GTP+, Nance Ferreira, de 39 anos, acompanhou de perto as mudanças que permitiram uma qualidade de vida mais confortável para pessoas soropositivas. Vivendo com o HIV há 17 anos, ela descobriu sua sorologia quando viu o ex-marido quase morrer por complicações da doença. “Foi uma novela, ele ficou nove meses internado. A família dele descobriu e não me contou por colocar a culpa em mim. Eu pensei que eu ia morrer junto. Nossa filha tinha dois anos na época. Pensei: ‘será que ela também tem?’ Demorava muito, não tinha teste rápido. Esperei quase seis meses até saber a minha sorologia e só podia fazer o teste nela depois de dois resultados positivos. Seis meses nessa agonia sem saber se ela tinha ou não”.
Apesar da angústia, o tempo de espera serviu para que Nance se fortalecesse e compreendesse melhor o HIV através de grupos de apoio para criar a coragem de contar para a família quando o resultado reagente chegou. Dezessete anos depois, ela passou por outro casamento, teve outra filha e, há um ano, se reaproximou do ex-marido, que sobreviveu às complicações. Nenhum das crianças nasceu com a infecção graças ao estado chamado de indetectável, quando a carga viral do HIV no corpo é tão pequena que o vírus se torna intransmissível.
Para isso, é preciso fazer o tratamento antirretroviral corretamente, com acompanhamento médico. De acordo com a UNAIDS, 86% das pessoas com acesso ao tratamento no mundo tem a carga viral indetectável. Hoje acessível no SUS, composto por apenas dois comprimidos ao dia e com efeitos colaterais mínimos, o chamado “coquetel” já foi bem mais complicado. “Durante anos, tomei um coquetel que me provocou profundas crises de depressão. Descobri só recentemente que era o meu retroviral a causa, como um dos efeitos colaterais que ele tinha e eu sequer sabia. Há pouco tempo troquei de remédio para um novo. E tudo pelo SUS, nem sequer tenho plano de saúde”, comenta Nance.
DADOS IMPORTANTES
No Brasil, 900 mil pessoas vivem com HIV
766 mil foram diagnosticadas, 594 mil fazem tratamento com antirretroviral e 554 mil não transmitem o vírus
135 mil pessoas ainda não sabem que são portadores de HIV
Entre 1986 e 2017, Pernambuco registrou 26.212 mil casos de Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), isto é equivalente a 64 diagnósticos por mês.
Entre 2013 e 2017, houve uma queda 41,5% no número de diagnósticos
Foram 10.946 mil óbitos causados por Aids no estado, entre 1984 e 2017
Globalmente, o número de mortes resultadas por complicações da aids caiu em 33% (1,2 milhão em 2010 para 770 mil em 2018)
Entre os países latinos apresentaram redução de diagnósticos estão El Salvador (-48%), Nicarágua (-29%) e Colômbia (-22%)
Fontes: Ministério da Saúde, Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco e Unaids (ONU).
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