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Famílias são principal elo para recrutamento das comunidades terapêuticas

Atualizado: 9 de nov. de 2020


Ilustração: Quihoma Isaac (@quihomaollustration)

O primeiro contato da técnica de enfermagem aposentada Rosa Oliveira, 66 anos, com a Instituição Manassés foi dentro de um ônibus. Dois rapazes subiram no coletivo, vendendo canetas e fazendo propaganda da comunidade. Disseram que estavam há quatro meses em tratamento contra o uso de drogas e contaram um trecho da história de vida. O discurso e a aparência deles chamaram a atenção da senhora, que pegou um dos panfletos distribuídos e levou para casa. O papel ficou durante semanas sobre a estante da sala.


Aquele trajeto de ônibus ocorreu há 11 anos. Rosa estava cansada das noites mal dormidas de acordar para buscar o filho na rua. “Ouvir aquela história me deu esperança. Só Jesus sabe como era, era muita droga, muita”, lembra. Rosa esperou o filho pedir ajuda. “Ela estava chorando muito e eu disse: mãe, ‘sozinho eu não consigo’.” Rosa foi até a estante e pegou o panfleto esquecido. Nem trocou de roupa e levou o filho à unidade da Instituição Manassés, em Lauro de Freitas (BA). “Quando ele chegou lá, fizemos uma entrevista. No outro dia, o pastor da igreja batista que eu frequentava me deu o dinheiro para pagar a viagem e o Marcos viajou.”


A história de Rosa e Marcos é a de muitas famílias, que são os principais elos entre as comunidades terapêuticas e os acolhidos. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 88% das instituições mencionam o encaminhamento familiar como a mais frequente forma de entrada em uma CT. Ainda que a premissa de uma comunidade terapêutica - e o maior marcador de diferença para uma clínica privada - seja o internamento voluntário, o intermédio dos parentes pode ser considerado um indutor ao internamento, para os críticos do modelo.

Fonte: Perfil das comunidades terapêuticas brasileiras - Ipea

“Sugestões, pressões, condições e admoestações afetivas fazem parte dessa mediação. Não podemos esquecer, é claro, que são as famílias e os círculos de sociabilidade mais próximos que, fora o próprio usuário, mais sofrem com uma situação de dependência química”, explica o pesquisador do Ipea Marco Natalino, no artigo “Isolamento, Disciplina e Destino Social em Comunidades Terapêuticas”.


Na maioria das vezes, são mães, irmãs ou esposas/companheiras/namoradas as responsáveis por condicionar à internação. Elas se responsabilizam pelo pagamento do acolhido e tomada de decisões. “Muitas mães o tempo todo se questionam ‘onde foi que eu errei?’, ‘por que ele foi para esse caminho?’. Elas se sentem culpadas, algumas mais, outras menos, ao mesmo tempo em que estão exaustas, sobrecarregadas, violentadas e invadidas”, descreve a especialista em dependência química do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Outras Drogas do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP) Isabel Bernardes.

Fonte: Perfil das comunidades terapêuticas brasileiras - Ipea

A decisão de deixar o parente em um CT muitas vezes é pautada em estancar uma dor generalizada. “São pessoas que estão tentando se virar, sobreviver ao capitalismo, e começa uma história de sumir dinheiro dentro de casa, vender fogão, geladeira, para usar drogas”, ressalta a pesquisadora do Ipea, responsável pelo relatório de mapeamento das CTs, Maria Paula Gomes dos Santos. A CT aparece, nesse contexto, como uma solução possível diante da raiva, tristeza e impotência, tanto dos usuários como das famílias. “Gera uma sensação de não abandono, de que está deixando a pessoa protegida. A internação é uma resposta fácil, rápida e pronta para muitas angústias”, diz Isabel Bernardes.


A esperança convertida em fé


Rosa depositou todas as esperanças na viagem de Marcos para Fortaleza, ainda que não fosse acompanhar ao vivo a transformação esperada. “Eu me sentia forte e cada vez mais eu orava ao senhor para ele não desistir. E ele foi, fez o tratamento, passou 10 meses. Depois de uns três anos, meu outro filho, o Carlos Eduardo, também foi”, conta. Antes da primeira internação, ela frequentava a Igreja Batista Supremo Louvor há seis meses, mas sem laços profundos. Agora, define-se como evangélica, “para honra e glória do senhor”.O distanciamento dos filhos do uso abusivo de drogas é considerado uma vitória da fé.

Fonte: Perfil das comunidades terapêuticas brasileiras - Ipea

A creditação de Rosa pode ser explicada por uma lacuna deixada pelo Estado brasileiro, para o psicólogo e integrante da Rede Latino-americana de Direitos Humanos e Saúde Mental Daniel Lomonaco. Sem o Estado, resta a fé. “O serviço público não chega, mas a igreja está chegando. Nem sempre o estado consegue comunicar a existência de um Centro de Atenção Psicossocial (Caps), por outro lado há um vínculo de confiança com o pastor”, ressalta.


Para a coordenadora-geral do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da Universidade de Brasília (UnB), Andrea Galassi, a desinformação sobre a dependência de drogas compromete a busca por soluções no Brasil. E, nesse sentido, o Estado também é ausente. “A questão moral exerce um peso maior na sociedade do que qualquer informação fundamentada na ciência.” Em consequência, há o impedimento de enxergar o uso abusivo como um problema multifatorial. “O uso problemático está inserido dentro de um contexto sociaeconômico. Dizer, por exemplo, que é uma doença do cérebro é um entendimento ultrapassado. Por isso, é preciso ofertar um cardápio de possibilidades de tratamento, pois as pessoas respondem de maneira diferente a eles”, acrescenta Andrea.


Desde 2001, com a portaria 3.088, do Ministério da Saúde, as CTs fazem parte da Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no Sistema Único de Saúde (SUS). Como tal, deveriam estar interligadas com os demais serviços de saúde mental públicos, mas nem sempre isso acontece. Por vários fatores.


Elas não são reconhecidas como instituições da saúde no Brasil. Para que fossem enquadradas assim teriam, por exemplo, que cumprir requisitos como corpo profissional técnico contratado. Porém, o relatório do Ipea mostra que a proporção de coordenadores e monitores administrativos é maior nas comunidades que a presença de médicos, enfermeiros e demais terapeutas da equipe multidisciplinar de saúde.


Na avaliação de Maria Paula Gomes dos Santos, a CTs não têm interesse em cumprir os requisitos para transformar-se em instituições da saúde. “Elas preferem ter uma posição de acolhimento, de reinserção social, por isso se propõem a serem caracterizadas como instituições de educação social, ainda que prestem algum atendimento ligado à saúde”, explica. Pablo Kurlander, ex-coordenador geral da Federação Brasileira das Comunidades Terapêuticas (Febract), defende que há dois problemas. “Há uma absoluta falta de rede de atenção mental na maioria dos municípios brasileiros. Por outro lado, há uma perseguição às CTs, a rede não quer encaminhar as pessoas para as comunidades.” Priscila Farfan, antropóloga e doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pondera que há uma heterogeneidade na prática no conceito e modelo de CTs no Brasil, portanto não há consenso entre elas sobre se inserir de vez na política pública de saúde.


Segundo o Ipea, a relação entre as comunidades e a rede de saúde é fraca. Metade das instituições não indicam os internos para os postos de saúde da atenção primária, 61% não enviam para hospitais públicos e 70%, para os Caps, Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas). Apesar disso, a aplicação de medicamentos aos internos ocorre em 55% das CTs.


No caso da Instituição Manassés, não há medicamentos. “A vitória é nossa em nome de Jesus”, bradam os internos, ao início ou fim do culto. Em caso de possíveis complicações, a Manassés diz ter relação com o Caps e com as redes básicas de atenção à saúde. Se há crise de abstinência, a principal intervenção que conhecem é aquela, a divina.

Fonte: Perfil das comunidades terapêuticas brasileiras - Ipea

A sensação de gratidão vinculada à fé é reforçada porque nem sempre ficam claros quais os métodos empregados para o alcance da abstinência. Rosa, por exemplo, só podia fazer uma ligação por semana para os filhos nos primeiros meses de tratamento deles. A relação de vínculo da CT com a família permanece de outra forma. Em casos de desistência, 84,7% das comunidades dizem só realizar o desligamento após contato com a família ou pessoa de referência. Em casos de fuga, 81,6% fazem o mesmo. Em 66% das CTs pesquisadas pelo Ipea, há o recebimento de contribuições financeiras dos parentes dos acolhidos.


O psiquiatra e psicanalista, um dos diretores clínicos do Instituto Recife de Apoio Integral às Dependências (Raid), José Carlos Escobar diz que falta base científica para justificar a crença de na fé como método terapêutico. “A religião não é uma técnica psicoterápica. Não há comprovação da eficácia dela como método de recuperação”, diz. A literatura científica tampouco é conclusiva sobre qual modelo é mais eficiente no cuidado ao uso abusivo de drogas. A taxa de recaída, após um ano de fim de tratamento, é semelhante em casos de aposta na abstinência total ou não, permanece na faixa dos 60% a 70%, escreveu Maria Paula Gomes Santos, no relatório do Ipea.


“O ser humano vive conflitos, e o destino deles em cada pessoa depende da estrutura psíquica dela. Algumas encontram no uso exagerado de uma substância a forma de lidar. A doença, no caso, é o conflito”, define o psiquiatra José Carlos Escobar. Para ele, a criminalização das drogas levou a sociedade a creditar à religião uma possível cura. “Essa visão tira do sujeito seu conflito. Traduz a questão como ‘conflito’ entre Deus e o diabo, que é a droga, o ruim. Na busca da mudança comportamental pelo medo, o ser humano perde sua autonomia, fica dependente da religiosidade”, acrescenta o médico.


A gratidão das famílias às CTs gera devoção e algumas também passam a atuar para divulgar o trabalho das entidades. Rosa anda com panfletos da Manassés - um deles estampa uma foto de Marcos. No Uruguai, bairro popular onde mora em Salvador, todos conhecem a história da família e, vez ou outra, um vizinho pede um dos papéis de propaganda. “Uns quatro ou cinco se livraram das drogas e hoje são colegas dos meus filhos. Outros dois desistiram”, calcula. Sempre que vê uma dupla vendendo os objetos com a farda da Manassés no ônibus, Rosa levanta e dá seu testemunho. “Faço questão, me dá prazer.”


O que fica para trás por quem migra para as comunidades terapêuticas


Brenda Alcântara (@brenda.alcantara_)

Depois de um ano de pagamento de parcelas, a última vistoria antes da entrega das chaves do apartamento ocorreu no início de agosto. O maior sonho da vida do filho de Rosa, Marcos Oliveira, 39, e da esposa dele, Tácia Oliveira, 36, estava prestes a se realizar. Eles deixariam o aluguel. Nem tiraram da embalagem a cômoda, o guarda-roupa e o berço comprados para a chegada da terceira filha. Os móveis esperam no terraço, empilhados em caixas de papelão, igual como saíram da loja. A expectativa da mudança era para setembro, mas os planos precisaram mudar.


Marcos e Tácia moravam em Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife, há quatro anos, desde que ele chegou para ser diretor da Institução Manassés em Pernambuco. Na mesma semana em que fez a última visita na futura casa própria, Marcos recebeu uma ligação. A Instituição Manassés ia fechar a unidade onde trabalha, devido à dificuldade de manutenção durante a pandemia. Ele precisaria viajar para Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador. A primeira resposta foi reativa. Marcos não queria ir, tinha acabado de realizar um sonho, mas retrocedeu. “A instituição abriu as portas para mim em um momento que não mereci, não vou dar as costas a ela agora”, explica.


A ida para Lauro de Freitas significa a sétima mudança de estado em 11 anos. Marcos já atravessou 14.463 quilômetros nesse tempo, de ônibus e avião, para servir à Instituição Manassés. A distância percorrida desde que entrou nesse ciclo equivale a uma viagem entre Salvador e Sydney, na Austrália.


Todas as vezes em que se mudou, algo ficou para trás. Da primeira vez, foram Tácia e a filha mais velha, Marcele, hoje com 18 anos. Sem dizer adeus, para iniciar o tratamento, Marcos foi para Fortaleza. O casal tinha rompido a relação três meses antes. “Me diziam apenas que ele tinha ido trabalhar em outro estado, mas vi um panfleto da Manassés na casa da mãe dele e fiquei ligando até descobrir”, conta Tácia. Logo depois, foi transferido para a unidade do Recife, após começar um novo relacionamento, o que é proibido pelo protocolo da casa. Depois dos nove meses se tratando, retornou a Salvador, onde buscou, sem sucesso, emprego. A procura durou três meses. Marcos decidiu, então, voltar à Manassés. Dessa vez, como obreiro - ou seja, responsável por cuidar de acolhidos recém-chegados.


Brenda Alcântara (@brenda.alcantara_)

No novo cargo, Marcos foi para São Luís, Maceió e Manaus, onde estava antes de voltar a Pernambuco. Nem sempre a família - Marcos e Tácia retomaram o casamento - pode acompanhar. “Eu sentia muita falta dele, principalmente à noite. Não conseguia dormir, acordava na madrugada com saudade”, lembra ela. A primeira viagem de Tácia para fora da Bahia aconteceu para encontrar o marido. Passou dois dias num ônibus para chegar a São Luís. O casal pagou duas diárias num hotel para ficar junto e, dois dias depois, ela retornou a Salvador. Foram quatro dias no sacolejo do ônibus e dois com o marido.


Quando Marcos migrou para Maceió, novamente a pedido da Manassés, não havia motivo para mais. Ela carregou a filha, guardou os pertences em sete mochilas e, numa sexta-feira à noite, tomou um ônibus apenas com destino de ida para a capital alagoana. Ao chegar, avisou a Marcos. “Eu disse: ‘como vou fazer?’ Não tenho casa para morar. Só tinha um colchão.” Em um mês, os dois alugaram um imóvel. Casaram em uma celebração coletiva realizada por uma faculdade local. Para viver com Marcos, Tácia deixou a bebida para trás. Também virou evangélica. A pedido do marido, engravidou da segunda filha.


O casal ainda se acomodava à configuração familiar e veio o chamado para se mudarem para Manaus. “Foi horrível, a gente estava gostando de morar em Maceió. Era perto de Salvador, dava para visitar a família. Em Manaus era tudo diferente, o lugar, as pessoas. A passagem era cara”, conta Tácia. A mudança para Jaboatão dos Guararapes foi um alívio. Agora, mais uma vez grávida, com a vida encaminhada e os planos divididos em prestações de uma casa própria, o maior sonho da vida deles, a família se prepara para a mudança. Mais uma vez, Tácia não está tão satisfeita. “Vamos voltar para perto da família, mas eu tenho medo da recaída”, diz. Já Rosa, a mãe de Marcos, não teme. “Digo que o bairro morreu para ele. A vida está feita, é seguir em frente e esquecer que aqui existe.”

Brenda Alcântara (@brenda.alcantara_)

Essa reportagem foi financiada pela Fundación Gabo como parte do fundo para investigações e novas narrativas sobre drogas.


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