Entre 2000 e 2015, o interior do Nordeste presenciou um boom no número de instituições federais de ensino superior
Reportagem: Amanda Rainheri
A desigualdade é o ponto de partida para remontar a história da expansão das universidades federais para o semiárido nordestino. Mas antes, vamos a um contexto. No final dos anos 1990, a região, que ocupa mais de 1.500.000 de quilômetros quadrados, o equivalente a 18% do território nacional, abrigava uma população de 45,5 milhões de habitantes. Era no Nordeste que, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vivia - ou sobrevivia - cerca de metade da população pobre do País. Esqueça o desenvolvimento. As cidades do interior do Nordeste só ganhavam os noticiários por um único motivo: a seca.
A zona semiárida tem mais de 880 mil quilômetros quadrados, o que representa 57% do território da região, e historicamente é castigada por longos períodos de estiagem. Quando uma grande seca acontece, a produção agrícola se perde e a pecuária acaba ficando debilitada, muitas vezes dizimada. Assim, as camadas mais pobres da população residentes em áreas rurais eram extremamente vulneráveis às condições climáticas e dependentes de políticas de socorro. Para muitos, só restava buscar melhores condições de vida em outras regiões do País, como o Sudeste, ou em áreas mais urbanizadas do próprio Nordeste, como as capitais.
Assim como as melhores condições de vida, o acesso à educação superior também estava nesses locais. Somente nos anos 2000, essa realidade começa a mudar. “Quando se analisam os dados do Censo de Educação Superior do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), a título de 2000, no Nordeste as matrículas no ensino superior do interior eram praticamente metade das matrículas das capitais. Aos poucos, no final do governo de Fernando Henrique Cardoso e depois Lula e Dilma, essa proporção, essa diferença, foi diminuindo”, explica o demógrafo Wilson Fusco, que já foi membro da Diretoria da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP) e da Diretoria da Associação Latino-americana de População (ALAP) e atualmente é professor do Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional (Profsocio), pesquisador titular na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e coordenador do Programa de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic/Fundaj/CNPq).
“Existe uma questão histórica bem anterior, de grande desigualdade. Havia uma grande defasagem em termos de matrículas com relação ao Nordeste e o Sul e Sudeste do País. Foi por lá, no Rio de Janeiro, que começaram as instituições de ensino superior no Brasil. Quando vieram para o Nordeste, as universidades federais começaram a diminuir as desigualdades, mas ainda assim ficaram restritas quase que exclusivamente às capitais”, completa o pesquisador.
Nos governos de Lula, de 2003 a 2006 e depois de 2007 a 2011, a expansão do ensino superior para o interior começa a ganhar força. A linha foi seguida pela sucessora Dilma Rousseff, entre 2011 e 2014. Durante os governos dos dois presidentes petistas, houve a criação de dezoito universidades federais, com a introdução de 173 campi em cidades do interior do País, praticamente duplicando o número de alunos entre 2003 a 2014: de 505 mil para 932 mil. Essa política só foi possível graças ao Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), instituído pelo decreto nº 6.096 de 2007, que injetou aporte financeiro nas universidades públicas federais mediante contratos de gestão. Somente no primeiro ano de funcionamento, os recursos destinados ao Reuni foram da ordem de R$ 415 milhões.
No Nordeste, as instituições que surgiram a partir dos anos 2000 foram a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), em 2002; Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), em 2002; Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), em 2005; Universidade Federal da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em 2010; Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) em 2013, Universidade Federal do Cariri (UFCA), em 2013; Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), em 2013; Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAP), em 2018; e Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar), em 2018.
A chegada das instituições de ensino superior significou a oportunidade de poder estudar perto de casa para milhares de alunos que não tinham condições de se manter nas capitais. Um levantamento realizado por Wilson Fusco e pelo professor Ricardo Ojima, do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (DDCA/UFRN), mostra que passam a ter acesso ao ensino grupos minoritários, que antes não viam na educação uma chance de futuro. No Censo de 2010, a média de idade dos estudantes nos municípios de interior era de 27,35 anos; 64,1% eram mulheres e 61% eram pessoas “não brancas.” Para se ter ideia do crescimento, no Censo de 2000 a porcentagem de pessoas que não eram brancas ocupando vagas no interior do Nordeste era de 45%.
Na década que separa os dois Censos do IBGE, o número de matriculados em instituições de ensino superior no País cresceu a 7,3 % a.a., enquanto que nos municípios das capitais do Nordeste esse crescimento foi de 9,0 % a.a. e nos municípios do interior foi de 11,1% a.a., ritmo superior ao do país e das capitais da região. “A expansão, a interiorização da forma como ocorreu no Nordeste, de forma mais acelerada do que no resto do Brasil, serviu para diminuir as desigualdades, atingindo a população que não tinha tanta oportunidade. Um número grande de mulheres passou a ocupar vagas; a população preta ou parda, que tem relação grande com as situações de maior vulnerabilidade, passou a ter oportunidade também. O crescimento no acesso foi justamente das minorias. A população mais abastada não tinha dificuldades em entrar no ensino superior. A classe mais alta estava em todas as universidades”, pontua o pesquisador da Fundaj.
A chegada de universidades públicas ao interior, explica Fusco, também está diretamente ligada à expansão das universidades particulares para a região. “A partir dessa dinâmica de primeiro ofertar vagas nas universidades públicas, há a formação de professores, condição necessária para se levar universidades privadas para aquela região também. Isso gera contratações de pessoas que residem nos locais e forma recurso humano e mão de obra qualificada.”
Mas o desenvolvimento trazido pela presença de uma universidade vai muito além. “Junto com a universidade, chega ao interior uma semente de desenvolvimento. Existe uma população que vive no entorno e vai ser incorporada, como mão de obra. Existem alunos que irão estabelecer residência e demandar serviços de maior valor agregado e maior especialização. É um crescimento paulatino que, aos poucos, vai agregando novas populações, novas demandas nas condições de formação; o capital humano da população vai melhorando e passam a existir atividades econômicas mais interessantes, mais especializadas”, resume o demógrafo.
Assim, tratar sobre os cortes orçamentários dos últimos anos e a precarização do ensino superior, com a suspensão de bolsas, por exemplo, que ajudam a manter os estudantes nos cursos, impacta toda uma cadeia, não apenas os alunos diretamente. “No final do governo Dilma, lá por 2015, há uma diminuição importante de vagas no ensino público. Isso freia o processo de diminuir a desigualdade entre classes sociais no Nordeste. Começa a haver um retrocesso no processo de redução da desigualdade na oferta de vagas entre o interior e a capital. A gente tinha melhorado a situação, mas isso não se sustentou. Nos últimos três anos, a gente percebe uma piora muito grande. O que percebemos é a migração de pessoas para fora”, analisa Wilson Fusco.
Primeira sede no interior
A primeira universidade federal a ter sua sede implantada no interior do Nordeste foi a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), que atende simultaneamente três dos nove Estados da Região: Bahia, Pernambuco e Piauí. Criada em 2002, por meio da lei N° 10.473, a Univasf tem sede em Petrolina, no Sertão pernambucano, e campi situados em Juazeiro, na Bahia, e São Raimundo Nonato, no Piauí.
A instalação da instituição na região do semiárido foi fruto da articulação de dois então deputados federais: Osvaldo Coelho, por Pernambuco, e Jorge Khoury, pela Bahia. Coelho faleceu em 2015, mas Khoury lembrou à reportagem como o processo ocorreu. “Osvaldo Coelho foi o baluarte desse trabalho. Nós começamos a fazer os trabalhos no Congresso com as bancadas de Pernambuco e Bahia e nos reunimos na época com o ministro Paulo Renato para apresentar o pleito da criação da Universidade Federal do Vale do São Francisco. Devido à uma questão de rompimento político no Senado, ele acabou ficando parado. Depois de um tempo, fui informado de que ele havia voltado a andar, mas que se trataria da Universidade Federal de Petrolina. Articulei com a bancada da Bahia para que tirássemos da pauta esse projeto e ele voltasse a ser discutido em um âmbito regional, e não que ficasse restrito a Petrolina”, conta.
O conceito de uma universidade regional era, na época, inédito no País. “Todas as universidades tinham o nome de um Estado ou de uma cidade. Fomos questionar se existia restrição a uma universidade regional. Não havia. Mas não bastava isso. Além da primeira universidade federal com nome regional, queríamos que fosse a primeira universidade multicampi, com campus em diferentes Estados. Conseguimos incluir isso no projeto e levá-lo para votação. Na Câmara dos Deputados, o Piauí também pleiteou a presença da universidade no Estado. Para aprovarmos rapidamente, acatamos”, relata.
Para ele, a chegada da universidade foi um divisor de águas. “Aquela região nossa do Vale do São Francisco, eu digo que vivemos diferentes momentos. O primeiro com a navegação do São Francisco, que permitiu o transporte de produtos; o segundo, a chegada de energia hidroelétrica, que modificou a dinâmica, já que só tínhamos motores a óleo diesel; o terceiro foi a agricultura irrigada, que deu tudo o que representa hoje a cidade no que diz respeito a produção de frutas e o quarto a Univasf. E, com ela, o maior salto da região”, argumentou o ex-deputado
O primeiro reitor da universidade, José Weber Freire Macedo, foi trazido do estado do Espírito Santo. A Univasf abriu as portas com 315 cargos docentes e 250 servidores de carreira Técnico-Administrativo em Educação (TAE). Desses, 94 tinham nível superior e 156 nível intermediário. O primeiro vestibular ocorreu em 2004, com oferta de 530 vagas para 11 cursos de graduação. Ao todo, 11.789 candidatos concorreram às vagas.
As primeiras aulas aconteceram em 18 de outubro de 2004, após solenidade realizada no Teatro do Sesc, em Petrolina. Os aprovados ingressaram em cursos ofertados nos campi de Petrolina, Juazeiro e São Raimundo Nonato. Em Petrolina, foram ofertados os cursos de Administração, Enfermagem, Medicina, Psicologia e Zootecnia. Em Juazeiro, foram concentradas as Engenharias. O mais antigo curso de Arqueologia em andamento no Brasil em universidade pública foi criado na Univasf, ofertado na cidade de São Raimundo Nonato (PI), na região da Serra da Capivara, que batiza o nome do Campus.
A partir do Reuni, a Univasf ampliou o número de cursos, dando origem à criação de outros dois campi: Campus Ciências Agrárias (CCA), também em Petrolina, na zona rural da cidade; e Campus Senhor do Bonfim (BA). E em 2012, foi aprovada pelo Conselho Universitário (Conuni) a criação do Campus Paulo Afonso (BA), que oferta o segundo curso de Medicina da Univasf. As atividades acadêmicas do mais novo campus da Univasf tiveram início em setembro de 2014, pouco antes do aniversário de 10 anos da instituição. No dia 14 de julho de 2017, a proposta de criação do Campus Salgueiro (PE) foi aprovada pelo Conuni e no dia 25 de agosto do mesmo ano, o Ministério da Educação (MEC) autorizou o funcionamento do sétimo Campus da Univasf.
O professor Julianeli Tolentino, que foi reitor da universidade até 2020, defende que a chegada do ensino superior não só ao Vale do São Francisco, mas às regiões mais remotas do Nordeste, é uma reparação histórica. “É uma universidade multicampi, com características muito importantes que vieram para sanar essa dívida histórica do Brasil de levar educação no nível superior com qualidade para esses rincões distantes, que, em um passado bem recente, não tinham expectativa de receber um serviço como esse”, argumentou.
“Nesses municípios e nos adjacentes vemos com clareza o desenvolvimento que chegou com a universidade. Existe uma diferença clara entre o que tínhamos no passado e o que temos hoje, no presente, especialmente levando em consideração a qualidade de vida das pessoas”, continua o ex-reitor. Julianelli destacou ainda a importância da oferta da pós-graduação e de mestrado e doutorado na instituição. “Aqui no nosso Sertão havia um grande número de pessoas, profissionais formados, que desejavam complementar sua formação, e isso não era possível. À época, essas pessoas não conseguiam se deslocar para as capitais, seja Recife, Salvador ou Teresina. A chegada da universidade vem para sanar esse problema e hoje temos profissionais das diversas áreas do conhecimento aqui mesmo nos seus municípios, desempenhando o seu papel profissional e também contribuindo para o desenvolvimento dessa região.”
Mudança de vida
A mudança de vida destacada por Julianelli Tolentino faz parte da história de Ediel Valério, de 31 anos, hoje médico patologista. Aluno da oitava turma de medicina da Univasf, ele realizou residência médica em São Paulo e retornou concursado para o Hospital Universitário, onde foi aluno.
Ediel é natural do município de Pedra, no Agreste do Estado, onde cresceu em meio às dificuldades. Ele é o primeiro da família a ter acesso ao ensino superior e um diploma que foi passaporte para a mudança de vida. “Passei por muita dificuldade. Cursei o ensino médio no Cefet (Centro Federal de Educação Tecnológica) de Pesqueira, a 30 quilômetros de Pedra, e era uma rotina muito complicada. Saía às 5h e voltava para casa às 15h, muitas vezes sem ter o que comer no lanche. Fiz o primeiro vestibular em 2006 e não passei. Em 2007, fiz uma prova e ganhei uma bolsa para um curso pré-vestibular no Recife. Vivi de favor na casa de conhecidos, porque todo o dinheiro que eu tinha era para comer nessa época. No fim daquele ano, passei para medicina”, lembra.
Criado em cidade pequena, Ediel optou por estudar em Petrolina para continuar morando no interior. “Estudei aqui e fiz prova de residência para Salvador, Recife e São Paulo. Acabei indo para São Paulo fazer patologia e, no final da minha residência, passei no concurso do Hospital Universitário da Univasf e voltei para a minha universidade.”
Ediel reconhece a importância que a chegada da Universidade teve para a formação de estudantes do interior, como ele. “Para mim, nunca foi uma opção estudar em particular. Era impossível para minha mãe bancar um curso, ainda mais sendo medicina, que é muito caro. Me formei em 2014 e 95% da minha turma era de fora de Petrolina, de cidades do entorno, como Taracatu, Petrolândia, interior da Bahia… além da oportunidade para quem vive na região, a universidade trouxe ensino, pesquisa e extensão; trouxe mudança no estilo de vida e na cultura das pessoas.”
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