Interiorização do ensino superior impulsiona o desenvolvimento no Nordeste
- Equipe Retruco
- 24 de mar. de 2021
- 9 min de leitura
Atualizado: 31 de mar. de 2021
Entre 2000 e 2015, o interior do Nordeste presenciou um boom no número de instituições federais de ensino superior
Reportagem: Amanda Rainheri

A desigualdade Ć© o ponto de partida para remontar a história da expansĆ£o das universidades federais para o semiĆ”rido nordestino. Mas antes, vamos a um contexto. No final dos anos 1990, a regiĆ£o, que ocupa mais de 1.500.000 de quilĆ“metros quadrados, o equivalente a 18% do território nacional, abrigava uma população de 45,5 milhƵes de habitantes. Era no Nordeste que, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e EstatĆstica (IBGE), vivia - ou sobrevivia - cerca de metade da população pobre do PaĆs. EsqueƧa o desenvolvimento. As cidades do interior do Nordeste só ganhavam os noticiĆ”rios por um Ćŗnico motivo: a seca.
A zona semiĆ”rida tem mais de 880 mil quilĆ“metros quadrados, o que representa 57% do território da regiĆ£o, e historicamente Ć© castigada por longos perĆodos de estiagem. Quando uma grande seca acontece, a produção agrĆcola se perde e a pecuĆ”ria acaba ficando debilitada, muitas vezes dizimada. Assim, as camadas mais pobres da população residentes em Ć”reas rurais eram extremamente vulnerĆ”veis Ć s condiƧƵes climĆ”ticas e dependentes de polĆticas de socorro. Para muitos, só restava buscar melhores condiƧƵes de vida em outras regiƵes do PaĆs, como o Sudeste, ou em Ć”reas mais urbanizadas do próprio Nordeste, como as capitais.
Assim como as melhores condiƧƵes de vida, o acesso Ć educação superior tambĆ©m estava nesses locais. Somente nos anos 2000, essa realidade comeƧa a mudar. āQuando se analisam os dados do Censo de Educação Superior do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais AnĆsio Teixeira), a tĆtulo de 2000, no Nordeste as matrĆculas no ensino superior do interior eram praticamente metade das matrĆculas das capitais. Aos poucos, no final do governo de Fernando Henrique Cardoso e depois Lula e Dilma, essa proporção, essa diferenƧa, foi diminuindoā, explica o demógrafo Wilson Fusco, que jĆ” foi membro da Diretoria da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP) e da Diretoria da Associação Latino-americana de População (ALAP) e atualmente Ć© professor do Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional (Profsocio), pesquisador titular na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e coordenador do Programa de Bolsas de Iniciação CientĆfica (Pibic/Fundaj/CNPq).
āExiste uma questĆ£o histórica bem anterior, de grande desigualdade. Havia uma grande defasagem em termos de matrĆculas com relação ao Nordeste e o Sul e Sudeste do PaĆs. Foi por lĆ”, no Rio de Janeiro, que comeƧaram as instituiƧƵes de ensino superior no Brasil. Quando vieram para o Nordeste, as universidades federais comeƧaram a diminuir as desigualdades, mas ainda assim ficaram restritas quase que exclusivamente Ć s capitaisā, completa o pesquisador.

Nos governos de Lula, de 2003 a 2006 e depois de 2007 a 2011, a expansĆ£o do ensino superior para o interior comeƧa a ganhar forƧa. A linha foi seguida pela sucessora Dilma Rousseff, entre 2011 e 2014. Durante os governos dos dois presidentes petistas, houve a criação de dezoito universidades federais, com a introdução de 173 campi em cidades do interior do PaĆs, praticamente duplicando o nĆŗmero de alunos entre 2003 a 2014: de 505 mil para 932 mil. Essa polĆtica só foi possĆvel graƧas ao Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e ExpansĆ£o das Universidades Federais (REUNI), instituĆdo pelo decreto nĀŗ 6.096 de 2007, que injetou aporte financeiro nas universidades pĆŗblicas federais mediante contratos de gestĆ£o. Somente no primeiro ano de funcionamento, os recursos destinados ao Reuni foram da ordem de R$ 415 milhƵes.
No Nordeste, as instituiƧƵes que surgiram a partir dos anos 2000 foram a Universidade Federal do Vale do SĆ£o Francisco (Univasf), em 2002; Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), em 2002; Universidade Federal do RecĆ“ncavo da Bahia (UFRB), em 2005; Universidade Federal da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em 2010; Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) em 2013, Universidade Federal do Cariri (UFCA), em 2013; Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), em 2013; Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAP), em 2018; e Universidade Federal do Delta do ParnaĆba (UFDPar), em 2018.
A chegada das instituiƧƵes de ensino superior significou a oportunidade de poder estudar perto de casa para milhares de alunos que nĆ£o tinham condiƧƵes de se manter nas capitais. Um levantamento realizado por Wilson Fusco e pelo professor Ricardo Ojima, do Departamento de Demografia e CiĆŖncias Atuariais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (DDCA/UFRN), mostra que passam a ter acesso ao ensino grupos minoritĆ”rios, que antes nĆ£o viam na educação uma chance de futuro. No Censo de 2010, a mĆ©dia de idade dos estudantes nos municĆpios de interior era de 27,35 anos; 64,1% eram mulheres e 61% eram pessoas ānĆ£o brancas.ā Para se ter ideia do crescimento, no Censo de 2000 a porcentagem de pessoas que nĆ£o eram brancas ocupando vagas no interior do Nordeste era de 45%.
Na dĆ©cada que separa os dois Censos do IBGE, o nĆŗmero de matriculados em instituiƧƵes de ensino superior no PaĆs cresceu a 7,3 % a.a., enquanto que nos municĆpios das capitais do Nordeste esse crescimento foi de 9,0 % a.a. e nos municĆpios do interior foi de 11,1% a.a., ritmo superior ao do paĆs e das capitais da regiĆ£o. āA expansĆ£o, a interiorização da forma como ocorreu no Nordeste, de forma mais acelerada do que no resto do Brasil, serviu para diminuir as desigualdades, atingindo a população que nĆ£o tinha tanta oportunidade. Um nĆŗmero grande de mulheres passou a ocupar vagas; a população preta ou parda, que tem relação grande com as situaƧƵes de maior vulnerabilidade, passou a ter oportunidade tambĆ©m. O crescimento no acesso foi justamente das minorias. A população mais abastada nĆ£o tinha dificuldades em entrar no ensino superior. A classe mais alta estava em todas as universidadesā, pontua o pesquisador da Fundaj.
A chegada de universidades pĆŗblicas ao interior, explica Fusco, tambĆ©m estĆ” diretamente ligada Ć expansĆ£o das universidades particulares para a regiĆ£o. āA partir dessa dinĆ¢mica de primeiro ofertar vagas nas universidades pĆŗblicas, hĆ” a formação de professores, condição necessĆ”ria para se levar universidades privadas para aquela regiĆ£o tambĆ©m. Isso gera contrataƧƵes de pessoas que residem nos locais e forma recurso humano e mĆ£o de obra qualificada.ā
Mas o desenvolvimento trazido pela presenƧa de uma universidade vai muito alĆ©m. āJunto com a universidade, chega ao interior uma semente de desenvolvimento. Existe uma população que vive no entorno e vai ser incorporada, como mĆ£o de obra. Existem alunos que irĆ£o estabelecer residĆŖncia e demandar serviƧos de maior valor agregado e maior especialização. Ć um crescimento paulatino que, aos poucos, vai agregando novas populaƧƵes, novas demandas nas condiƧƵes de formação; o capital humano da população vai melhorando e passam a existir atividades econĆ“micas mais interessantes, mais especializadasā, resume o demógrafo.
Assim, tratar sobre os cortes orƧamentĆ”rios dos Ćŗltimos anos e a precarização do ensino superior, com a suspensĆ£o de bolsas, por exemplo, que ajudam a manter os estudantes nos cursos, impacta toda uma cadeia, nĆ£o apenas os alunos diretamente. āNo final do governo Dilma, lĆ” por 2015, hĆ” uma diminuição importante de vagas no ensino pĆŗblico. Isso freia o processo de diminuir a desigualdade entre classes sociais no Nordeste. ComeƧa a haver um retrocesso no processo de redução da desigualdade na oferta de vagas entre o interior e a capital. A gente tinha melhorado a situação, mas isso nĆ£o se sustentou. Nos Ćŗltimos trĆŖs anos, a gente percebe uma piora muito grande. O que percebemos Ć© a migração de pessoas para foraā, analisa Wilson Fusco.
Primeira sede no interior
A primeira universidade federal a ter sua sede implantada no interior do Nordeste foi a Universidade Federal do Vale do SĆ£o Francisco (Univasf), que atende simultaneamente trĆŖs dos nove Estados da RegiĆ£o: Bahia, Pernambuco e PiauĆ. Criada em 2002, por meio da lei N° 10.473, a Univasf tem sede em Petrolina, no SertĆ£o pernambucano, e campi situados em Juazeiro, na Bahia, e SĆ£o Raimundo Nonato, no PiauĆ.

A instalação da instituição na regiĆ£o do semiĆ”rido foi fruto da articulação de dois entĆ£o deputados federais: Osvaldo Coelho, por Pernambuco, e Jorge Khoury, pela Bahia. Coelho faleceu em 2015, mas Khoury lembrou Ć reportagem como o processo ocorreu. āOsvaldo Coelho foi o baluarte desse trabalho. Nós comeƧamos a fazer os trabalhos no Congresso com as bancadas de Pernambuco e Bahia e nos reunimos na Ć©poca com o ministro Paulo Renato para apresentar o pleito da criação da Universidade Federal do Vale do SĆ£o Francisco. Devido Ć uma questĆ£o de rompimento polĆtico no Senado, ele acabou ficando parado. Depois de um tempo, fui informado de que ele havia voltado a andar, mas que se trataria da Universidade Federal de Petrolina. Articulei com a bancada da Bahia para que tirĆ”ssemos da pauta esse projeto e ele voltasse a ser discutido em um Ć¢mbito regional, e nĆ£o que ficasse restrito a Petrolinaā, conta.
O conceito de uma universidade regional era, na Ć©poca, inĆ©dito no PaĆs. āTodas as universidades tinham o nome de um Estado ou de uma cidade. Fomos questionar se existia restrição a uma universidade regional. NĆ£o havia. Mas nĆ£o bastava isso. AlĆ©m da primeira universidade federal com nome regional, querĆamos que fosse a primeira universidade multicampi, com campus em diferentes Estados. Conseguimos incluir isso no projeto e levĆ”-lo para votação. Na CĆ¢mara dos Deputados, o PiauĆ tambĆ©m pleiteou a presenƧa da universidade no Estado. Para aprovarmos rapidamente, acatamosā, relata.
Para ele, a chegada da universidade foi um divisor de Ć”guas. āAquela regiĆ£o nossa do Vale do SĆ£o Francisco, eu digo que vivemos diferentes momentos. O primeiro com a navegação do SĆ£o Francisco, que permitiu o transporte de produtos; o segundo, a chegada de energia hidroelĆ©trica, que modificou a dinĆ¢mica, jĆ” que só tĆnhamos motores a óleo diesel; o terceiro foi a agricultura irrigada, que deu tudo o que representa hoje a cidade no que diz respeito a produção de frutas e o quarto a Univasf. E, com ela, o maior salto da regiĆ£oā, argumentou o ex-deputado
O primeiro reitor da universidade, JosĆ© Weber Freire Macedo, foi trazido do estado do EspĆrito Santo. A Univasf abriu as portas com 315 cargos docentes e 250 servidores de carreira TĆ©cnico-Administrativo em Educação (TAE). Desses, 94 tinham nĆvel superior e 156 nĆvel intermediĆ”rio. O primeiro vestibular ocorreu em 2004, com oferta de 530 vagas para 11 cursos de graduação. Ao todo, 11.789 candidatos concorreram Ć s vagas.
As primeiras aulas aconteceram em 18 de outubro de 2004, após solenidade realizada no Teatro do Sesc, em Petrolina. Os aprovados ingressaram em cursos ofertados nos campi de Petrolina, Juazeiro e São Raimundo Nonato. Em Petrolina, foram ofertados os cursos de Administração, Enfermagem, Medicina, Psicologia e Zootecnia. Em Juazeiro, foram concentradas as Engenharias. O mais antigo curso de Arqueologia em andamento no Brasil em universidade pública foi criado na Univasf, ofertado na cidade de São Raimundo Nonato (PI), na região da Serra da Capivara, que batiza o nome do Campus.
A partir do Reuni, a Univasf ampliou o nĆŗmero de cursos, dando origem Ć criação de outros dois campi: Campus CiĆŖncias AgrĆ”rias (CCA), tambĆ©m em Petrolina, na zona rural da cidade; e Campus Senhor do Bonfim (BA). E em 2012, foi aprovada pelo Conselho UniversitĆ”rio (Conuni) a criação do Campus Paulo Afonso (BA), que oferta o segundo curso de Medicina da Univasf. As atividades acadĆŖmicas do mais novo campus da Univasf tiveram inĆcio em setembro de 2014, pouco antes do aniversĆ”rio de 10 anos da instituição. No dia 14 de julho de 2017, a proposta de criação do Campus Salgueiro (PE) foi aprovada pelo Conuni e no dia 25 de agosto do mesmo ano, o MinistĆ©rio da Educação (MEC) autorizou o funcionamento do sĆ©timo Campus da Univasf.
O professor Julianeli Tolentino, que foi reitor da universidade atĆ© 2020, defende que a chegada do ensino superior nĆ£o só ao Vale do SĆ£o Francisco, mas Ć s regiƵes mais remotas do Nordeste, Ć© uma reparação histórica. āĆ uma universidade multicampi, com caracterĆsticas muito importantes que vieram para sanar essa dĆvida histórica do Brasil de levar educação no nĆvel superior com qualidade para esses rincƵes distantes, que, em um passado bem recente, nĆ£o tinham expectativa de receber um serviƧo como esseā, argumentou.
āNesses municĆpios e nos adjacentes vemos com clareza o desenvolvimento que chegou com a universidade. Existe uma diferenƧa clara entre o que tĆnhamos no passado e o que temos hoje, no presente, especialmente levando em consideração a qualidade de vida das pessoasā, continua o ex-reitor. Julianelli destacou ainda a importĆ¢ncia da oferta da pós-graduação e de mestrado e doutorado na instituição. āAqui no nosso SertĆ£o havia um grande nĆŗmero de pessoas, profissionais formados, que desejavam complementar sua formação, e isso nĆ£o era possĆvel. Ć Ć©poca, essas pessoas nĆ£o conseguiam se deslocar para as capitais, seja Recife, Salvador ou Teresina. A chegada da universidade vem para sanar esse problema e hoje temos profissionais das diversas Ć”reas do conhecimento aqui mesmo nos seus municĆpios, desempenhando o seu papel profissional e tambĆ©m contribuindo para o desenvolvimento dessa regiĆ£o.ā
MudanƧa de vida
A mudança de vida destacada por Julianelli Tolentino faz parte da história de Ediel Valério, de 31 anos, hoje médico patologista. Aluno da oitava turma de medicina da Univasf, ele realizou residência médica em São Paulo e retornou concursado para o Hospital UniversitÔrio, onde foi aluno.
Ediel Ć© natural do municĆpio de Pedra, no Agreste do Estado, onde cresceu em meio Ć s dificuldades. Ele Ć© o primeiro da famĆlia a ter acesso ao ensino superior e um diploma que foi passaporte para a mudanƧa de vida. āPassei por muita dificuldade. Cursei o ensino mĆ©dio no Cefet (Centro Federal de Educação Tecnológica) de Pesqueira, a 30 quilĆ“metros de Pedra, e era uma rotina muito complicada. SaĆa Ć s 5h e voltava para casa Ć s 15h, muitas vezes sem ter o que comer no lanche. Fiz o primeiro vestibular em 2006 e nĆ£o passei. Em 2007, fiz uma prova e ganhei uma bolsa para um curso prĆ©-vestibular no Recife. Vivi de favor na casa de conhecidos, porque todo o dinheiro que eu tinha era para comer nessa Ć©poca. No fim daquele ano, passei para medicinaā, lembra.
Criado em cidade pequena, Ediel optou por estudar em Petrolina para continuar morando no interior. āEstudei aqui e fiz prova de residĆŖncia para Salvador, Recife e SĆ£o Paulo. Acabei indo para SĆ£o Paulo fazer patologia e, no final da minha residĆŖncia, passei no concurso do Hospital UniversitĆ”rio da Univasf e voltei para a minha universidade.ā
Ediel reconhece a importĆ¢ncia que a chegada da Universidade teve para a formação de estudantes do interior, como ele. āPara mim, nunca foi uma opção estudar em particular. Era impossĆvel para minha mĆ£e bancar um curso, ainda mais sendo medicina, que Ć© muito caro. Me formei em 2014 e 95% da minha turma era de fora de Petrolina, de cidades do entorno, como Taracatu, PetrolĆ¢ndia, interior da Bahia⦠alĆ©m da oportunidade para quem vive na regiĆ£o, a universidade trouxe ensino, pesquisa e extensĆ£o; trouxe mudanƧa no estilo de vida e na cultura das pessoas.ā