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Justiça para Miguel e sua família e a urgência em fortalecer as narrativas independentes

Atualizado: 10 de jun. de 2020

Coluna por Eduarda Nunes



Foto: Marlon Diego/ Agência Retruco

Mais uma criança negra teve a vida abreviada por condutas que escancaram a mentalidade colonial que rodeia boa parte da classe média e classe média alta no Brasil. Fomos surpreendidos pelo menino Miguel que caiu do nono andar porque a patroa de sua mãe, que é mais uma das trabalhadoras domésticas que foram coagidas a se expor desnecessariamente na pandemia, não teve paciência para cuidar dele por um momento.


Um acontecimento que quanto mais mexe, mais fede. Sarí Gaspar Corte Real, primeira-dama de Tamandaré, é a personagem principal dessa história de dor e desprezo pela cria de quem cuidou de sua família desde que também era cria. Mirtes, mãe de Miguel, trabalhava nessa casa que sua própria mãe também foi doméstica. Se dedicou à família de tal forma que até contraiu a Covid-19 atráves do patrões e viveu o último dia com seu filho enquanto trabalhava.


A gente pode narrar essa história a partir de várias lentes, mas me atenho a contar sob a ótica do pacto que é firmado silenciosamente pela branquitude para proteger os seus em quaisquer circunstâncias. Se hoje a gente consegue nomear responsáveis e ter noção do quão problemática é a situação é pela pressão popular em exigir que se tornassem públicas as informações sobre os que tinham que ser chamados à responsabilidade.

A proteção que a Corte Real recebeu da Polícia e, consequentemente, das grandes mídias inflamou ainda mais uma situação que já surgiu absurda. Ao alegar estar cumprindo a lei de abuso de autoridade para proteger a identidade de Sarí enquanto o processo corre, não só as autoridades legais, mas também os meios de comunicação escancararam o tanto de violação de direitos pessoas negras e pobres são submetidas diariamente por esses órgãos. O que são os programas policiais, por exemplo? Se julgou-se absurdo que o nome e rosto de Sarí não acompanhassem a notícia da queda da criança, é porque julgou-se ser algo fora do comum.


A repercussão da gravidade do acontecimento ficou, basicamente, a cargo das redes sociais, movimentos sociais e dos meios de comunicação independentes. Essa foi mais uma das vezes que a tão ressaltada imparcialidade jornalística foi questionada contundentemente e muitos perguntaram “e se fosse o contrário?”. Qual é o valor-notícia nessa tragédia? Como é possível não se questionar sobre como uma criança de cinco anos, em um edifício desconhecido, chegou a um andar que não era o que a mãe trabalhava e despencou de lá? Onde estava a mãe? Passeando com o cachorro. Onde estava a pessoa responsável pela criança enquanto isso? Quando ultrapassamos o factível, o papel do jornalismo é provocar reflexões e não apenas contar. O fato da criança ter caído do nono andar é absurdo e quanto mais é sabido do contexto, maior a tragédia fica e é nesse contexto que está o valor-notícia. Além disso, é importante ter em mente que, mais que um possível descuido, desatenção ou má vontade do repórter, omitir ou dar destaques a algo num veículo de comunicação é linha editorial e, muitas vezes, independe de quem esteve ali na linha de frente da notícia.


É em casos como esse que fica ainda mais urgente que se dissemine a importância da regularização da mídia, do fortalecimento da comunicação independente e da briga constante pelo antirracismo também dentro das redações. É importante demais colaborar de alguma forma com uma narrativa dos fatos que corra por fora do que o empresariado precisa, que coloque em cheque e exponha o pacto narcísico que impede que os podres de quem maneja a opinião pública a seus favores venham ao conhecimento geral.


Na última sexta-feira, centenas de pessoas saíram de suas casas movidas pelo luto e revolta que esse acontecimento provocou em todo o Brasil. A vigília organizada pela família de Miguel foi acompanhada por grupos de movimentos sociais e pela sociedade civil. Uma caminhada de quase 3 km que parou em frente às Torres Gêmeas e ordenou que a impunidade não encontre terreno amigável não só nesse, mas nos outros casos de genocídio da população negra. Pois, como bem disse nossa Preta Velha Conceição Evaristo, eles combinaram de nos matar, mas a gente combinamos de não morrer.



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