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Mercado de internações involuntárias segue funcionando em meio à pandemia

Ilustração: Quihoma Isaac (@quihomaillustration)

Mesmo diante das medidas de isolamento social determinadas por vários estados brasileiros, inclusive Pernambuco, desde março por causa da pandemia da covid-19, o mercado de negócios envolvendo a internação involuntária de pessoas em uso abusivo de álcool e outras drogas não arrefeceu. Os riscos de infecção atrelados ao coronavírus não foram são suficientes para impedir que o esquema de remoções, denunciado em agosto pela Agência Retruco, fosse interrompido. Muito menos que os chamados captadores, pessoas que ganham comissões por internamento, saíssem à caça de novos contratos. As clínicas também continuaram abertas.


Em maio, quando Pernambuco enfrentou o pico da pandemia segundo a Secretaria Estadual de Saúde (SES-PE), com 3.082 mortes no mês, a Retruco entrou em contato com oito instituições com sede no estado e no Rio Grande do Norte. Sete delas afirmaram que estavam aceitando pacientes. Quatro indicaram parceiros para realizar o serviço de internação involuntária, outras quatro assumiram ter um serviço próprio para fazer isso.

A reportagem também conversou com três pessoas indicadas pelas clínicas contactadas para fazer as remoções, também chamadas de resgate. O procedimento, que geralmente envolve o deslocamento de pelo menos três pessoas até uma residência desconhecida, não tinha um protocolo padrão. Cada empresa ou autônomo fez como lhe pareceu conveniente e adequado para respeitar as medidas de distanciamento social.


Francisco*, indicado pelo Centro Terapêutico Elo, localizado na cidade de Gravatá, Agreste pernambucano, contou que nada mudou na empresa de resgate dele durante a pandemia. “Na semana passada, realizei duas remoções", exemplifica. Apesar disso, garantiu que usou máscara e álcool em gel, mas não fez recomendação de cuidados aos familiares dos pacientes que encontrou. "Entramos na casa de máscara, pegamos ele, botamos dentro do carro, colocamos a máscara nele, tacamos álcool no que for necessário e vamos embora."

Otávio*, o contato passado pelo Grupo Recanto quando a reportagem buscou saber detalhes do tratamento em uma ligação, afirmou que adaptou o serviço para evitar o contágio. “Estamos fazendo revezamento da equipe e exigindo que todos cumpram a quarentena. Meus funcionários só têm saído para realizar os resgates”, diz ele, que envia três socorristas para cada ação. “A equipe vai de máscara e luva, no carro que está higienizado. Para as famílias, pedimos que elas passem um pano com água sanitária no chão”, acrescenta.


A Retruco procurou também as clínicas de recuperação. Cinco delas disseram que os pacientes admitidos durante a pandemia ficam em isolamento antes de se integrar às atividades com os demais moradores. Por outro lado, não deixaram de oferecer a internação involuntária, que pressupõe o deslocamento e o contatos com terceiros, algo contrário ao distanciamento social indicado durante a pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em março, quando foi registrado o primeiro caso no estado, o Governo de Pernambuco decretou medidas de distanciamento social e fechamento de comércios. A reabertura gradual só começou em junho.


A Clínica Terapêutica Renascer de Natal, uma das consultadas pela reportagem, afirmou que aceitava os pacientes, desde que eles se submetessem a um teste para detecção da covid-19. Em laboratórios privados, o exame para identificação da infecção pela doença custa, em média, R$ 400. A clínica dá a opção de realizar o teste por meio da instituição, ao valor de R$ 250. Já o Centro Terapêutico Reviver, onde o tratamento custa R$ 5,5 mil por mês, afirmou que aceitava os internos, mas que realizava uma avaliação clínica e, em caso de necessidade, colocava a pessoa em isolamento.


Em reportagem publicada no dia 12 deste mês, a Retruco mostrou que a internação involuntária de pessoas em uso abusivo de drogas passou a ser garantida via legislação em 2019 no Brasil. Apesar disso, o mercado já acontecia sem previsão legal, dando margem a práticas de comercialização das internações, com lucros exponenciados e sem, muitas vezes, indicação médica. A matéria foi republicada no site Smoke Buddies, compartilhada pelo Cannabis Monitor Brasil e nos perfis de redes sociais do mandato coletivo da Juntas Deputadas, Rede Nacional de Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila), Fórum Mineiro de Saúde Mental e Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial de Pernambuco - Libertando Subjetividades.



Impacto de casos da covid-19 nas clínicas é incerto


Fabrício Selbmann, diretor fundador do Grupo Recanto, clínica que tem unidades em Pernambuco e Sergipe, afirma que reservou 20 quartos para os novos pacientes nas unidades pernambucanas durante a pandemia. Eles precisaram permanecer 14 dias em isolamento, antes de se unirem aos demais moradores. Mesmo assim, a clínica não passou imune ao coronavírus. “Tivemos um caso de uma pessoa que apresentou sintomas, porém que já estava aqui faz tempo. Não sabemos como o vírus entrou. Então, resolvemos testar todo mundo e encontramos mais três casos. Todos foram tratados e hoje estão bem”, disse.


Não há um dado oficial sobre a quantidade de casos de covid-19 em clínicas privadas de tratamento de uso abusivo de álcool e outras drogas em Pernambuco. Em outros estados, como o Rio Grande do Sul, uma clínica da cidade de Nova Hartz registrou um surto da doença, com 19 casos confirmados, em junho. “Em Sergipe, tivemos um profissional que apresentou sintomas, mas não passou para ninguém, lá passamos mais tranquilo”, explica Fabrício Selbmann. Segundo ele, o impacto maior no Grupo foi na quantidade de internações. A clínica demitiu 20 funcionários e teve um prejuízo de R$ 250 mil desde março, pela baixa procura por internações. “A gente tinha uma média de 160 internos em três unidades, e tivemos uma queda de mais de 20% de internações”, conta.


Ausência de normativas e fiscalização


Desde o primeiro caso de covid-19 no Brasil, registrado em 26 de fevereiro, o país não criou uma normativa ou protocolo de conduta específico para as clínicas de reabilitação em uso abusivo de substâncias psicoativas. O Ministério da Saúde emitiu nota técnica para a Rede de Atenção Psicossocial. Há uma nota técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para estabelecimentos de acolhimento, onde se inserem as comunidades terapêuticas, e uma cartilha do Ministério da Saúde, porém que não se aplica aos estabelecimentos assistenciais de saúde, aqueles que oferecem terapêuticas psiquiátricas ou terapêuticas exclusivas de profissionais de saúde mental, categoria das clínicas.


Em maio, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) emitiu comunicado pedindo a revisão da nota do Ministério da Saúde, onde pedia entre outras pautas a articulação com os órgãos do sistema de justiça para reavaliação das pessoas internadas involuntária e compulsoriamente em hospitais psiquiátricos, na perspectiva de alta e retorno ao meio comunitário. O documento também recomendava a adoção de medidas que favorecessem a redução da concentração de pessoas internadas, para minimizar o risco de contaminação em massa.


Só que, além de as internações involuntárias permanecerem acontecendo em muitas clínicas, nem todas elas seguem as recomendações de vigilância. Em Pernambuco, apenas o Hospital Memorial Maria Dulce e Nossa Senhora do Ó Terapêutica estão com as licenças da Agência Pernambucana de Vigilância Sanitária (Apevisa) em dia. Os registros, segundo a SES-PE, contudo, podem ser feitos direto com as vigilâncias sanitárias municipais. A Retruco entrou em contato com as cidades de Igarassu e Camaragibe, onde estão as clínicas citadas na matéria. O primeiro respondeu que a única clínica com a licença em dia é o Grupo Novo Tempo. O Grupo Recanto e o Centro Terapêutico Libertação e Vida estão com o processo de renovação em andamento.


Em março, a Federação Brasileira de Clínicas Terapêuticas Involuntárias (Febraci) divulgou em sua página na internet a recomendação para que as afiliadas respeitassem as recomendações do Ministério da Saúde sobre o isolamento social. O texto diz que a Febraci recomenda a adoção do protocolo Greenwood, criado por uma clínica de mesmo nome, localizada em São Paulo. Entre as recomendações, estavam a de suspensão das internações e a suspensão das visitas. Porém, segundo um vídeo publicado na página da clínica própria clínica Greenwood no dia 20 de abril a instituição permanece realizando internações durante o período da pandemia, seguindo a mesma conduta das clínicas consultadas pela Retruco em Pernambuco e Rio Grande do Norte.

Saber a realidade das condutas adotadas durante a pandemia pelas clínicas privadas para tratamento de uso abusivo de álcool e outras drogas se torna difícil porque, via de regra, as fiscalizações dependem de denúncias ou do funcionamento presencial de órgãos normativos (que na pandemia foram suspensas).

O Conselho Regional de Psicologia de Pernambuco - 2ª Região (CRP-02), que monitora a presença e a conduta dos profissionais de psicologia nesse espaços, por exemplo, não tem feito as fiscalizações como de costume. “Estamos em trabalho remoto, então quando há denúncia estamos fazendo o contato com o profissional por telefone. A última fiscalização foi em fevereiro e encontramos coisas comuns, a falta de espaço para o profissional atuar, pessoas internadas de longa permanência, falta de prontuário de registro”, explica a presidente do CRP-02, Alda Roberta Campos.


Em 2020, a SES-PE iniciaria em parceria com o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) a Comissão Estadual Revisora de Internações Psiquiátricas Involuntárias (CIPI), um monitoramento das internações involuntárias realizadas no estado. O programa, denominado "Fiscaliz-AÇÃO em Saúde Mental", supervisionaria internações via Sistema Único de Saúde (SUS) ou não. Por causa da pandemia da covid-19, o trabalho prático precisou ser suspenso. Atualmente, o time de técnicos realiza as análises para composição do grupo que atuará, futuramente, nas fiscalizações.


Publicações das clínicas privadas sobre covid-19 carecem de comprovações científicas


Durante a pandemia, clínicas privadas para tratamento de uso abusivo de álcool e outras drogas estão usando perfis nas redes sociais e blogs para divulgar dados sobre possíveis correlações entre a “dependência química” e a covid-19. Em várias delas, o dependente é colocado como grupo de risco para o adoecimento, mas há uma carência de informações científicas comprovando a relação direta. Da mesma forma, há casos de informações distorcidas, como a de que as clínicas privadas foram consideradas serviços essenciais pelo Ministério da Cidadania.


A empresa Capital Remoções, especializada em realizar resgates, publicou um texto no dia 11 de maio afirmando que as clínicas e comunidades terapêuticas foram consideradas serviços essenciais por portaria do Ministério da Cidadania. O texto, contudo, distorce o conteúdo da portaria 340, do dia 30 de março de 2020. O documento é voltado apenas para as comunidades terapêuticas. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), as clínicas terapêuticas são estabelecimentos assistenciais de saúde - aqueles que oferecem terapêuticas psiquiátricas ou terapêuticas exclusivas de profissionais de saúde mental -, enquanto as comunidades terapêuticas são espaços acolhedores - estabelecimentos que não utilizam terapêuticas privativas de profissionais de saúde, e tem como metodologia a convivência entre os pares.


Em um texto publicado no dia 30 de abril no blog que mantém, a Grupo Recanto afirma que “devido ao uso de substâncias psicoativas”, os dependentes químicos “estão mais suscetíveis a vir a ter quadros mais graves (de covid-19), que trazem muitos prejuízos para a sua saúde.” Por isso, eles seriam “considerados como um grupo de risco para essa nova doença”, ainda que de acordo com os dados mais atualizados da OMS somente pessoas idosas e com condições de saúde pré-existentes (como pressão alta, doenças cardíacas, doenças pulmonares, câncer ou diabetes) seriam aquelas enquadradas como pessoas em situação de risco, por parecerem desenvolver doenças graves com mais frequência que outros.


A tese do artigo do Grupo Recanto é sustentada por duas premissas: a “diminuição do sistema imunológico” do dependente, em função do uso das substâncias, e pela preexistência de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão ou doenças respiratórias, provocadas pelo consumo dessas substâncias, mas incapazes de serem detectadas pelo usuário. A entidade diz, ainda, que “um dependente químico infectado com o Covid-19 tem maiores chances de vir a óbito” e que há muitos riscos de contaminação pela doença decorrentes de práticas sociais como o compartilhamento de objetos. O texto não traz as fontes científicas.


Em abril, a OMS divulgou um folheto com recomendações e cuidados sobre consumo de álcool e covid-19. No documento sobre álcool e a nova doença, a OMS destaca que o álcool afeta, tanto a curto como a longo prazo, quase todos os órgãos do corpo e que o uso, sobretudo excessivo, debilita o sistema imunológico. Assim, reduz a capacidade de enfrentar doenças infecciosas. Além disso, aumenta o risco da síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), uma das complicações mais graves da covid-19.


“Em relação a outras substâncias, como cocaína, maconha e crack, há um risco, pois elas são aspiradas ou inaladas, o que atenta contra o trato respiratório. Porém, um usuário apenas de drogas sintética, sem impacto nas vias aéreas, não terá um risco aumentado para covid, por exemplo”, afirma o psicólogo e professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM) Fábio José Orsini.


Sobre o compartilhamento de insumos, a coordenadora-geral do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da Universidade de Brasília (UnB), Andrea Galassi, explica que ela aumenta o risco, no entanto não é suficiente para enquadrar o usuário no grupo de risco. “Seguindo essa lógica, o compartilhamento de qualquer objeto de uso comum (copo de água, talher...) que tenha sido usado por alguém contaminado e, na sequência, por outra pessoa, também expõe ao risco e contaminação”, pondera.


A forma como o uso de substâncias psicoativas, mesmo numa situação de abuso, afeta os organismos varia de acordo com o tipo de droga, a intensidade e o perfil social e etário da pessoa. Não se pode falar de uso abusivo de forma homogênea, por isso não dá para pensar em uma abordagem terapêutica única, como o internamento, como solução para evitar a contaminação em meio a pandemia, como pregam algumas das publicações de clínicas. “A vulnerabilidade depende do tipo de droga que a pessoa usa, de onde ela mora, entre outros fatores. Pessoas em situação de rua realmente estão em situação mais complicada durante a pandemia, mas, mais do que com as drogas, isso tem a ver com outros fatores de vulnerabilidade social”, explica Luciane Raupp, presidente da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd).


*Alguns nomes dos entrevistados foram alterados para preservar a identidade

Essa reportagem foi financiada pela Fundación Gabo como parte do fundo para investigações e novas narrativas sobre drogas.


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