Por Laís Nascimento O Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha já chega ao 28º ano de celebração como mais uma forma de lembrar a necessidade de se quebrar estigmas. A mulher negra é, historicamente, colocada em um lugar de apagamento que reflete a violência estrutural e problemas sociais.
Essa data representa a luta pela falta de representação, pelos estereótipos e pela necessidade do fortalecimento dos laços entre mulheres negras para resgatar a ancestralidade como consolidação da resistência. Somos todos os dias aprisionadas a representações estigmatizadas e, junto aos nossos corpos, estão materializadas as emoções como forma de oprimir, descredibilizar e negligenciar.
Construção histórica do estigma
Os estigmas que tem como objetivo silenciar as mulheres negras são uma construção do período escravista e que perpetuam até os dias de hoje. Se, nos séculos passados, éramos forçadas a ser o retrato da subserviência e do não questionamento, os movimentos e lutas ressoaram nossa voz.
Foi a partir daí que os grupos interessados em manter suas posições hierárquicas viram a necessidade de justificar as violências estruturais. Para eles, seria importante criar um imaginário social que maquiasse a vulnerabilidade e/ou necessidade de sensibilidade com o sofrimento das mulheres negras. Nesse sentindo, foi construído o estereótipo de que somos seres raivosos e, ao mesmo tempo, inabaláveis. Capazes de suportar - caladas - dores, sofrimentos e fardos.
Piedade Marques é professora e militante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e da Rede de Mulheres Negras do Nordeste e fala sobre esse estigma: “É como se isso tirasse a nossa capacidade de visão, mas muito pelo contrário: o que fazemos com essa grande ira é poder ampliar a voz para que mais pessoas vejam”.
A quem serve?
O papel instituído socialmente para a mulher negra como raivosa e agressiva é uma forma de hierarquizar posicionamentos. É por meio da manutenção dessa imagem que os privilégios são mantidos e os nossos argumentos são desarticulados, vozes deslegitimadas e descredibilizadas. Atribuir o sentimento da raiva de forma “demonizada” às mulheres negras é mais uma forma de desumanização.
Esse estigma se alinha, na sociedade, ao mito da força. Nós, mulheres negras, somos vistas como indivíduos que não precisam de atenção ou cuidado, pois somos percebidas como pessoas fortes, insensíveis e/ou que conseguem se defender sozinhas e não precisam de ajuda. A esse discurso, ainda se acrescenta o estereótipo da falta de autocontrole, de domínio do emocional sobre o racional, da instabilidade.
Além disso, é por meio dessa imagem que se tenta quebrar o elo que nos une no movimento de luta. Negativar o sentimento da raiva serve para quem deseja que tenhamos medo de sentir, que guardemos indignações, revoltas e angústia. Eles têm como interesse estimular o nosso medo de parecermos raivosas ou agressivas, levando à nossa falta de questionamento frente às estruturas sociais. Como pontuou Piedade Marques, que participa do movimento de mulheres negras há mais de 30 anos, “a indignação é o primeiro motor para lutar contra a injustiça. Para mim, apatia é uma reação que garante as opressões”.
Raiva como energia e fôlego
Mas é em função dos estigmas que nós usamos a raiva como energia para o enfrentamento dessa estrutura que tenta nos aprisionar em corpos e almas. E, por meio de movimentos, nos fortalecemos e resgatamos o que é necessário para combater, construir e também desconstruir.
“Toda mulher tem um arsenal bem guardado de raiva potencialmente útil contra aquelas opressões, pessoal e institucional, que fez com que aquela raiva existisse”. Esse é um trecho da apresentação de Audre Lorde, escritora e ativista negra, em uma apresentação na conferência da Associação Nacional de Estudos de Mulheres, em Storrs, Connecticut Audre Lorde, em 1981.
Porque sentir nos humaniza e potencializa nossas vozes para caminharmos em busca de mais dignidade e visibilidade. Mulheres negras encontram suas identidades a partir de processos de dor, angústia, aceitação e raiva. Lutamos, nos unimos e buscamos mudanças por meio da raiva causada pelo alto índice de feminicídio negro, pelas abordagens policiais que nos sufocam e matam e pela falta de condições de vida digna.
Carta à Raiva
Se as pessoas pudessem te materializar, provavelmente seria como uma daquelas pedras difíceis de carregar e que atrapalham o andar livre de qualquer pessoa, bloqueando os caminhos e a evolução. Para mim, seria mais como a construção do caminho, que possibilita o andar livre.
A liberdade de sentir ainda não é enxergada em sua totalidade. Como pé descalço no chão quente, não temos licença para descansar: a ousadia faz calo. Por isso, Raiva, não são todos que entendem a sua necessidade de ser e dar fôlego a vida.
Você foi alimentada por todos aqueles que não querem te ver. Eles dizem ter medo desse sentimento porque só buscam o conforto das próprias dores. Se eu posso - e devo - gargalhar alto, por quê não usar a sua energia como ferramenta política para a liberdade? Sentir a raiva torna a luta menos exaustiva. Raiva também é afeto e promove encontros e avanços necessários. Ainda bem que eu tenho você comigo!
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