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Por que é ilegal e ineficiente cobrar aos presos o custo da tornozeleira eletrônica?


Foto: Agência Brasil

Por Renan Araújo


No dia 03/09/2020, a Assembleia Legislativa de Pernambuco aprovou um projeto que obriga presos a pagarem pela tornozeleira eletrônica que utilizem. O Projeto de Lei n. 14.493/2011 altera uma lei anterior para que passe a contar com a seguinte redação: “O preso deverá ressarcir o Estado das despesas realizadas com a aquisição do equipamento, de forma proporcional ao tempo de utilização”. Em seguida, prevendo a hipótese de presos que não tenham condições de arcar com os custos da tornozeleira, dispõe que: “Se não possuir recursos próprios para realizar o ressarcimento, o preso deverá valer-se do trabalho”. A breve leitura desses dispositivos já é suficiente para incitar um desconforto de que alguma coisa está errada – afinal de contas, soa como uma previsão de trabalho forçado como troca pela liberdade provisória. Nesta breve coluna, aprofundarei os motivos sobre o porquê do projeto ser péssimo: ele é ilegal e absolutamente ineficiente.

Primeiro, comecemos pela ilegalidade. O projeto é inconstitucional porque legisla sobre matéria penal e processual penal, o que é atribuição exclusiva da União, conforme o art. 22 da Constituição Federal. Ou seja, só o Congresso Nacional poderia criar uma obrigação dessas, que inova em punições ou no procedimento de aplicação da punição (não quero dar ideia). A matéria penal se encontra na criação de uma punição extra ao apenado – arcar com um custo pecuniário anteriormente inexistente além da privação de liberdade. A matéria processual penal está na criação de uma condição extra para que a liberdade provisória com medida cautelar seja concedida. De fato, os instrumentos que preveem o uso da tornozeleira são todos leis federais: o Código Processual Penal (art. 319, IX) e a Lei de Execução Penal (art. 146-B). Ao Estado cabem pequenas disposições metodológicas, jamais inovações penais.

Em segundo lugar, e provavelmente o mais importante para o debate público, o projeto é absolutamente ineficiente. É chocante acreditar que alguém pensaria que esse projeto teria qualquer efeito real no orçamento do estado de Pernambuco, quanto mais que solucionaria o problema do sistema prisional brasileiro, mas é exatamente isso que se lê na justificativa: “É grave a situação do sistema prisional brasileiro. A principal razão está na falta de recursos para mantê-lo. (...) Somente transferindo para o preso o custo para aquisição dos equipamentos de monitoramento eletrônico é que o sistema penitenciário poderá melhorar”. Obviamente a razão da falência das prisões no Brasil não é somente a falta de recursos (que não chega a sequer ser uma das razões), mas vamos assumir a fantasia de que seja. Vejamos então o quão substancial seria essa melhora se cobrássemos dos presos as tornozeleiras, assumindo também que eles conseguiriam pagá-las.

O custo mensal de uma tornozeleira eletrônica em 2017 estava entre R$ 167,00 e R$ 660,00, com média R$ 301,25, de acordo com relatório do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). De acordo com o mesmo relatório, havia em Pernambuco 2.300 pessoas monitoradas eletronicamente em 2015. Esse quantitativo acarreta um custo mensal de R$ 692.875,00 ao Estado. A primeira vista, pouco mais de meio milhão de reais por mês sequer parece um valor alto o suficiente para convencer alguém de que seria a única forma de solucionar o nosso sistema penitenciário. Mas, vamos mais fundo.

Vejamos qual o custo mensal de um preso. Esse é um dado mais difícil de se conseguir do que parece. O Tribunal de Contas da União tentou realizar essa estimativa em 2017 e chegou à conclusão de que “De modo geral, os gestores das Unidades da Federação e, consequentemente, do Depen, desconhecem o custo mensal do preso por estabelecimento penal, descumprindo-se diretrizes estabelecidas pelo CNPCP.” Nenhum estado da federação havia informado o custo mensal do preso ao Depen nos três anos anteriores. O mais próximo que consegui desse dado em Pernambuco foi uma entrevista ao programa Por Dentro com Cardinot do Secretário de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco, em que ele estima que um preso custe mensalmente R$ 1.200,00 ou “disso daí para menos”. Bom, mesmo incertos, podemos afirmar que um preso deve custar em torno de quatro vezes o valor de uma pessoa com tornozeleira eletrônica mensalmente. Multiplicando o custo mensal de cada preso pelo total da população prisional pernambucana, que de acordo com dados do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) era de 29.942 presos em 2017, chegamos ao valor mensal de R$ 35.930.400,00. Ou mais de 51 vezes o custo mensal das tornozeleiras eletrônicas.

Mas, claro, o sistema prisional não engloba todos os gastos relativos a segurança pública, que é muito mais complexa. O total de despesas em 2019 da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco, que inclui as polícias militar e civil, foi de R$ 4,8 bilhões (Portal da Transparência), em média R$ 400.000.000,00 por mês. Se cobrar pelas tornozeleiras não resolverá o sistema prisional, que custa 51 vezes seu valor, quem dirá a segurança pública do Estado, que custa mais de 500 vezes seu valor.

Enfim, é evidente que cobrar pelas tornozeleiras é uma ilegalidade que não compensa. Mas, pior que isso, é perceber que essa cobrança pioraria o problema. A Defensoria Pública do Estado do Ceará já argumentou o mesmo em parecer contra projeto de lei semelhante da Assembleia Legislativa cearense. Cobrar pela tornozeleira é um desincentivo à aplicação da medida que tem como um dos objetivos justamente reduzir o custo do sistema penitenciário. Além disso, trata-se de medida desigual que afetará mais pesadamente os detentos mais pobres, levando a uma seletividade punitiva ainda mais injusta. Em resumo, esse projeto desincentiva o uso de medidas alternativas que reduzem os gastos estatais com presos, enquanto incentiva o aprisionamento de detentos mais pobres que teriam o direito constitucional à liberdade provisória monitorada sem ter que pagar por isso. Além de ilegal e ineficiente, esse projeto é também absurdamente imoral.

Ao invés de se preocuparem com medidas inócuas ou que aprofundam ainda mais as mazelas do nosso trágico sistema prisional, a ALEPE poderia trabalhar na solução de um dos diversos problemas reais do sistema ou no incentivo às boas práticas que já existem.

Por exemplo, poderiam propor projetos para expandir o uso de tornozeleiras eletrônicas e outras medidas alternativas, contribuindo com a redução da população prisional e com a melhoria das condições das prisões. O sistema prisional pernambucano é o mais superlotado do país (CNJ). Além disso, são comuns brutais violações aos direitos humanos, incluindo estupros e espancamentos coletivos, o que já acarretou inclusive decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos para que ninguém mais fosse enviado ao Complexo Prisional do Curado. Neste relato particularmente chocante, coletado pelo grupo Além das Grades e publicado na Queen Mary Human Rights Review, pode-se perceber as consequências traumáticas que a desorganização e a informalidade do sistema prisional pernambucano trazem aos detentos, particularmente minorias como os LGBT. Essas graves violações fazem com que as prisões contribuam com o aumento nos crimes, ao invés de reduzi-los, como seria a intenção.

Outra possibilidade para a ALEPE é pensar em projetos que incentivem pontos em que o Estado tem agido positivamente. De acordo com dados do Conselho Nacional do Ministério Público, Pernambuco é o segundo estado com maior percentual de detentos matriculados em atividades de ensino: 20,06%, atrás apenas do Paraná com 20,24%. Por outro lado, enquanto o Paraná também é o estado com mais presos trabalhando no cárcere, com 54,90%, Pernambuco se encontra na 21ª colocação, com apenas 14,72% dos detentos trabalhando. Investir na capacitação dos detentos é retirá-los da ociosidade num ambiente brutal e dá-los oportunidades que reduzam as chances de que venham a reincidir no futuro. Ou seja, até mesmo na estreita perspectiva puramente orçamentária que o projeto de lei propõe, há alternativas para evitar que o Estado gaste uma, duas, três vezes com o mesmo indivíduo. Nenhuma dessas alternativas é cobrar por tornozeleiras eletrônicas.

Enfim, a ideia de que o Estado deve reduzir seu gasto com punição através da cobrança direta aos punidos não é inovadora. Pelo contrário, é uma prática medieval que foi superada pelas democracias modernas, apesar de ainda resistir em países como a Coreia do Norte. O caminho para a redução dos gastos com o sistema de justiça criminal não é misterioso: é reduzi-lo, humanizá-lo e assumir o difícil projeto de longo prazo de redirecionar gastos em punição para investimentos em políticas sociais – não há respostas no curto prazo populista e eleitoreiro em que a proposta da ALEPE ainda sobrevive.

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