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Um ano de Bacurau e a situação dos trabalhadores do audiovisual Pernambucano

Atualizado: 31 de ago. de 2020

Arte: Filipe Aca (@acafilipe)

Grandes filas, pauta na imprensa por semanas, além dos debates nas redes, incluindo defesas acaloradas e memes. Talvez sejam esses os elementos contemporâneos do que se convencionou a chamar um filme-evento, ideal para descrever os caminhos de Bacurau, que começaram há exatamente um ano pelo Brasil, sem contar as pré-estreias e passagens por festivais, por onde provocou empolgação, crítica, paixões e ressalvas. Em Pernambuco, a dimensão de evento do filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, ganhou outros contornos. Vimos por aqui, além da constatação de um prêmio no festival Cannes e logomarca de uma produtora que já esteve envolvida com nomes de renome mundial, que a produção estava acompanhada pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) e, mais especial, dos mecanismos de políticas públicas para o cinema no estado de Pernambuco. Enquanto mercado e indústria, esses foram movimentos que atestaram um patamar alcançado pelo audiovisual local, cada vez mais afastado de ser um polo de produção às margens. Claro que, antes dali ou adiante, ainda não encontramos um nível justo de democracia no acesso à produção criativa, sobretudo no cenário dos longas. Mas é de se comemorar que os arranjos regionais e nacionais de políticas públicas possibilitaram que fosse firmado um setor produtivo em continuidade, capaz de alçar maiores voos, como foi o de Bacurau, gerando empregos e movimentando a economia. No entanto, já em sua estreia, o filme chegou respirando ares sulfurosos em relação ao panorama da produção cinematográfica no país e em Pernambuco. Cerca de um mês antes, o presidente Jair Bolsonaro havia declarado que pretendia acabar com a Ancine, caso não pudesse filtrar - inconstitucionalmente - os projetos aprovados pela agência. O órgão já vinha, também, de um cenário praticamente de paralisação desde o governo Temer, enfrentando problemas com o Tribunal de Contas da União, que travou verbas importantes e gerou um clima de insegurança no setor, incluindo quem já tinha projetos aprovados e dispondo dos recursos. No estado de Pernambuco, o principal mecanismo de estímulo ao cinema, o Funcultura Audiovisual, teve seu edital atrasado em mais de um ano. Desde 2014, ele conta com aporte do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), da Ancine, o que fez dobrar seu tamanho. Mas com a paralisação do órgão, o edital precisou ter seu tamanho reduzido, precisando lançar suas edições 2018 e 2019 apenas no fim do ano passado.

Futuro cada vez mais incerto para os experientes

A produção local já vislumbrava a maré virando, mas continuava tocando projetos previamente aprovados. Com a pandemia, a incerteza desse futuro chegou mais depressa, abalando em diversos níveis uma rede de profissionais, que chegam às centenas em grandes trabalhos. Diretores e produtores foram logicamente afetados, contudo as coisas têm uma dimensão maior para profissionais vitais envolvidos com a construção e funcionamento de um set. Desde então, se repete “os primeiros a pararem e os últimos a voltarem”, mas o fato é que dor sobre isso não vem sendo compreendida e diluída. O maquinista-chefe e gaffer Carlinhos Tareco, integrante da equipe de Bacurau, carrega esses momentos de alta produtividade, temores e paralisação durante toda sua trajetória de mais de 20 anos. Dos anos 1990 para cá, passou pela televisão e publicidade como assistente de câmera e eletricista para trabalhar com aquilo que sempre sonhou desde quando viu os filmes de Chaplin com o pai. Com sua dedicação e paixão, agregou saberes e confiança pelo setor, acumulando curtas e longas no currículo e chegando ao cargo atual. Sua função, como tenta explicar para os filhos, consiste em fazer funcionar toda os aparatos técnicos que necessita o diretor de fotografia, entre gruas, carrinhos e trilhos, além do auxílio nas estruturas de iluminação.

Foto: arquivo pessoal

Além de Bacurau, Tareco também esteve envolvido em obras como Pacarrete, vencedor do último Festival de Gramado, Aquarius, Boi Neon, e outros títulos importantes do recomeço do cinema pernambucano, como O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas e o seminal Baile Perfumado. A partir de sua experiência, ele atesta o momento único de produtividade do cinema em Pernambuco. “Eu filmei muito mais de dez anos pra cá do que nos 14 anos de trabalho. Era uma velocidade muito rápida e ainda pude trabalhar em outros locais, como Rio, Belém e Ceará. Mas eu já conseguia ver uma certa reticência no mercado ali por volta de 2016. Do ano passado pra cá, a freada maior foi sentida com a mudança de governo. Já estava escrito que seríamos atacados e de forma muito violenta”, relata Carlinhos.


Com a chegada da pandemia, o que parecia ser um prenúncio se concretizou. “Eu sou um profissional que vive exclusivamente do audiovisual e, apesar de tudo, tinha um ano bem planejado. Senti logo e estou enfrentando dificuldades. Mas, felizmente, ainda estou conseguindo me virar, porque de uns anos pra cá fui vendo o cinema como uma espécie de turismo, com momentos de alta e baixas temporadas. Então, aproveitei esse momento que considerei como uma alta, ali em 2018 e até 2019, para conseguir ter um suporte”, explica. A turbulência também é sentida pelo produtor de objetos gaúcho Adriano Freitas, 48, com experiência há quase 15 anos no Recife. Ele começou sua carreira ainda em Porto Alegre, no teatro, e chegou na capital pernambucana aos 34 anos. Atualmente, a sua função dentro do cinema consiste em buscar objetos que atendam as necessidades da cena, visitando casas de famílias em busca deles. Uma tarefa pautada extremamente na confiança, pois lida com artefatos que possuem forte valor afetivo, além de ser vital para dar a atmosfera das obras.


Na carreira, trabalhou em obras que vão desde produções televisivas populares como Tá Puxado (TV Jornal), A Presepada e Entre Irmãs (TV Globo), além de Acqua Movie, com Lirio Ferreira, e King Kong en Asunción, com Camilo Cavalcante, este último selecionado para o próximo Festival de Gramado. Para Adriano, 2019 rendeu um bom número de trabalhos, mas as mudanças negativas no panorama do setor, as quais credita sua intensidade à chegada do governo Bolsonaro, e o acontecimento da pandemia, o atingiu em cheio.

Acabou a agenda, eu e vários profissionais fomos os primeiros a parar, sem trabalho nenhum e vivendo um momento de não conseguir pagar uma conta de luz ou poder comprar comida.

“Eu estava trabalhando até o começo desse ano, estava voltando de uma filmagem em Goiás quando foi começou a pandemia. Acabou a agenda, eu e vários profissionais fomos os primeiros a parar, sem trabalho nenhum e vivendo um momento de não conseguir pagar uma conta de luz ou poder comprar comida. Eu ainda sou um privilegiado porque tenho meu marido trabalhando, na área da saúde, porque eu não teria o que comer ou onde morar. Eu estou pensando em vender doces para pessoas diabéticas para poder me segurar”, relata Adriano.

Sucateamento compromete as novas gerações

Entre os profissionais mais jovens, as dificuldades não são tão diferentes. Para Palas Camila Lustosa, de 28 anos, a atuação na área começou há cerca de 6 anos, quando começou a trabalhar como platô após estudar na Academia Internacional de Cinema, no Rio de Janeiro, e posteriormente migrou para a área de transporte, em especial de cenários. Um de seus últimos trabalhos foi em Chão de Estrelas, na vindoura série de Hilton Lacerda (Tatuagem, Fim de Festa), além da experiência em curtas e no canal Multishow.

Apesar do envolvimento nas produções, Palas conta que já vem planejando tomar caminhos separadores do mercado audiovisual. A queda no número de editais e uma rotina intensa são suas grandes preocupações. “Um dia de produção já costuma levar doze horas. Para nós do transporte, é ainda maior, buscando e levando todo mundo. Ainda trabalho porque tenho contas para pagar” conta Palas, que atualmente faz faculdade de pedagogia para seguir esse plano de afastamento e vem se mantendo com o auxílio emergencial, além bicos com seu veículos, entre mudanças e entregas.

Dos tatames aos sets: a história de Márcio


Já para Márcio Silva, 42 anos, a migração aconteceu em outro sentido. Há cerca de dez anos, ele saiu dos tatames para os sets. Na época dava aulas de taekwondo, mas não considerava a atividade rentável para manter a vida. Foi então quando um aluno lhe contou que o pai trabalhava com cinema e talvez pudesse conseguir um emprego para o mestre das artes marciais. “Estranhei, naquela época na periferia, quando pensávamos em cinema, era Hollywood que vinha na cabeça. Mas sempre fui aficionado por cinema e fiquei maravilhado pela ideia de trabalhar com isso”, relembra.

Foto: Arquivo pessoal

Ele começou em campanhas políticas, dirigindo uma kombi e aprendendo como ser auxiliar de eletricista. Sua dedicação foi lhe rendendo trabalhos e sua afinidade com computadores facilitou seus caminhos na virada das fitas analógicas para o digital, atuando hoje como assistente de câmera e foquista em curtas e longas. Em suas palavras, seu trabalho é deixar a câmera pronta para o combate, com lentes limpas, baterias carregadas e auxiliar na precisão do foco. Assim como Adriano, seu 2019 ainda foi um ano de bons trabalhos, atuando em dois longas e um curta. Agora, ele está parado. “Eu sofri bastante porque minha vida é mantida com meu fluxo de trabalho. Não tem home office para captação de imagem, estamos completamente engessados e a classe está sem conseguir pagar as contas. Eu estou dependendo do auxílio e da ajuda de uma rede de trabalhadores da área”, afirma Márcio.


Apesar das perdas, audiovisual tenta resistir

Ele se refere a Rede de Apoio Audiovisual Pernambuco, iniciativa encabeçada por um grupo de trabalhadores do setor batizado de Produção - Resistência PE, que antes do coronavírus já discutia estratégias e lutas, agora se organizando para ajudar trabalhadores vulneráveis durante a pandemia. “A gente fez uma pesquisa e fomos vendo que diferente da elite do audiovisual, que são pessoas de classe média com uma retaguarda financeira, encontramos pessoas em situações de desespero. Algumas sem dinheiro para comprar comida ou correndo o risco de serem despejadas”, explica Henrique Lapa, assistente de produção e um dos articuladores da rede. Ao todo, já foram arrecadados por meio de uma Vakinha cerca de R$ 50 mil, distribuídos em ajudas de R$ 300 para os profissionais.

“A gente fez uma pesquisa e fomos vendo que diferente da elite do audiovisual, que são pessoas de classe média com uma retaguarda financeira, encontramos pessoas em situações de desespero. Algumas sem dinheiro para comprar comida ou correndo o risco de serem despejadas”

Entre os trabalhadores, a esperança para voltar a atuar ainda é latente. Neste ano de eleição para vereadores e prefeitos, alguns deles têm perspectivas de trabalhar nas campanhas, mas cientes que o volume de oportunidades deve ser reduzido por sets menores para cumprir com os procedimentos de segurança. Henrique relata que já há um grupo responsável pela construção de um protocolo para garantir um mínimo de segurança para esses profissionais, aguardando uma conversa com o Governo do Estado para a aprovação.


Já em um mundo pós-pandemia, todos os entrevistados carregam uma certa carga de otimismo. Nenhum deles acredita que o cinema pernambucano será paralisado de vez, mas veem mudanças no tamanho e adaptações que serão feitas. Adriano, por exemplo, aponta movimentos de maior organização e sindicalização para uma reorganização do cinema pernambucano enquanto mercado. “Vejo os filmes acontecendo e as coisas sendo retomadas, mas com muita organização agora. Nós profissionais precisamos fazer isso para mostrar que não são só as produtoras que mandam, que é preciso existir um equilíbrio. Há uma espécie de cultura canavieira do audiovisual. Precisamos reclamar cada vez mais e não baixar a cabeça”, vislumbra o produtor de objetos.


Lapa, Palas e Márcio também vêem algo parecido, com grandes produções tendo mais dificuldade de serem realizadas, mas com o mercado local sobrevivendo com aportes como o do Funcultura. Tareco, o mais experiente do grupo, também acredita na força da coletividade do setor. “A gente tem uma galera muito resistente, que vai lutar. Eu já passei por algumas crises, vi a época de Collor e o fim da Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S/A, braço estatal de produção cinematográfica encerrada em 1990), com toda aquela paralisação. Nunca perdi as esperanças e sei que sempre há como resistir. A gente vai tocando com o que conseguimos, nos adaptando e passaremos por essa crise”, aponta.


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