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Conheça as histórias de mães que perderam seus filhos para a LGBTfobia

Atualizado: 9 de mai. de 2021

Reportagem: Matheus Rangel

Arte: Filipe Aca

Bruna, Guilherme, Kaylane e Ricardo não se conheciam, mas fazem parte de uma mesma estatística: todos foram assassinados violentamente, vítimas do preconceito homotransfóbico no Brasil. Apesar de nunca terem se cruzado em vida, os quatro dividem mais algumas características em comum: eram jovens, nordestinos, bem humorados e morreram antes dos 25 anos, deixando órfãs quatro mães que nunca vão superar suas perdas.


Zilda, Franciane, Kika e Eleonora também não se conhecem, mas hoje estão na mesma situação que outras centenas de mães, muitas das quais integrantes das camadas mais vulneráveis da nossa sociedade, que foram condenadas ao luto pela intolerância alheia e precisaram se despedir de seus filhos e suas filhas por conta de crimes que, em alguns casos, sequer foram solucionados.


Se perder um filho pode ser uma experiência traumática para qualquer mãe, o sofrimento de vê-lo partir de forma violenta tem o poder de deixar marcas ainda mais profundas. No Brasil, os requintes de crueldade são uma constante nos assassinatos de pessoas LGBTQIA+. As histórias que você vai ler aqui são a prova disso.


Bruna e Kaylane foram mortas a tiro, Ricardo foi espancado até perder os sentidos e Guilherme foi apedrejado e queimado vivo na frente de testemunhas que não fizeram nada para ajudá-lo. Tragicamente, crimes como esses se repetem todos os anos.


Só em 2020, pelo menos 297 brasileiras passaram o Dia das Mães em luto pela primeira vez. Esse foi o número de pessoas LGBTQIA+ mortas no Brasil em 2019 de acordo com o Grupo Gay da Bahia. Vítimas do preconceito, tiveram suas histórias interrompidas e uma vida inteira reduzida a uma trágica estatística no país conhecido por ser o que mais mata mulheres transexuais e travestis no mundo inteiro.

Os números assustam, mas não dão conta de traduzir o vazio deixado por essas pessoas na vida de amigos, colegas de trabalho, familiares e, especialmente, suas mães. Elas rejeitam o título de guerreiras ou lutadoras, corriqueiramente atribuídos a mulheres que passam por traumas desse tipo, apesar das suas próprias batalhas por justiça e contra o preconceito que continua matando brutalmente inocentes.


A jornalista Eliane Brum descreveu como “mães vivas de uma geração morta” as mulheres que deram adeus aos seus filhos vítimas da violência policial nas favelas, no livro de reportagens O olho da rua. O fenômeno é parecido no caso das vidas ceifadas pelo preconceito: a expectativa de vida de mulheres transexuais e travestis no Brasil não chega a 35 anos. Para a maioria de nós, é esperado que se viva pelo menos até os 75. É toda uma geração impedida de envelhecer.


Nas histórias silenciadas de LGBTQIA+ mortos, vão embora sonhos - de fazer faculdade, de colocar silicone, de comprar uma casa para a família, de ser cabeleireiro, de cuidar dos irmãos, de viajar, de mudar de nome, de viver. Ficam só a saudade, a revolta e as memórias.


Depois que seus filhos e filhas foram embora, quase tudo mudou na vida de Zilda, Franciane, Kika e Eleonora. Quase todas desenvolveram algum tipo de doença que as atrapalharam no trabalho (um acidente vascular cerebral, um infarto ou depressão), quilos foram perdidos e relações afetadas. Cada qual com a sua particularidade, todas são unânimes em afirmar que foram enganadas pelo ditado “o tempo cura a saudade”.


Sangue, carne e coração


Eleonora já passou dez dias das mães sem Ricardo e Kika está indo para o quarto ano sem sua filha mais velha, Kaylane. Zilda está indo para o segundo sem Bruna e Franciane vai atravessar a data comemorativa pela primeira vez sem Guilherme neste ano. Todas elas afirmaram desejar que mais mães amem e aceitem seus filhos e suas filhas, independentemente das suas orientações sexuais e identidade de gênero.


“Independente da mudança física que você, como mãe, vai ver, se você pariu um menino e ele vai se transformar numa menina, seu sangue, carne e coração tão ali dentro. Então ame, porque no dia que você perder, vai sentir como dói. Eu amei e amo até o último momento da vida dele, onde quer que ele esteja eu amo meu filho… Filha, quer dizer. Sempre digo pra outras mães: ame, apoie, respeite”, relata Kika Machado Régis, moradora de Salvador aos 40 anos, que teve a filha Kaylane assassinada em Belo Horizonte, Minas Gerais.


Zilda da Silva Oliveira, potiguar de 56 anos, perdeu a filha Bruna em janeiro de 2020. Ela estava comprando cigarros em uma rua de Natal, capital do Rio Grande do Norte, quando foi alvejada por estranhos em uma moto. Para a mãe, quem não aceita os filhos por preconceito não sabe o que é ser feliz.


“Elas estão perdendo muito. Perdendo de ser amadas e compreendidas, porque eu sempre fui muita amiga e Bruna nunca escondeu nada de mim. Mas ela se tornou melhor ainda depois de se assumir travesti. Essas mães que pensam assim não sabem o que é ser feliz”, diz.

Para elas, a noção de tempo é diferente do tempo cronológico. Não importa se se passaram dez anos ou um, todas concordam que a sensação de perder um filho é a de carregar uma ferida que não se fecha, como se tivesse ocorrido no dia anterior. O fato é que falar sobre esse traumas nunca é uma tarefa fácil.


Por diversos motivos, muitas mães procuradas pela reportagem preferiram não tocar no assunto. Algumas por não se considerarem fortes o suficiente pra reviver as dolorosas lembranças, outras por medo de represálias dos criminosos ao expor o caso e outras ainda por não se sentirem prontas. Em alguns casos, mães que não aceitaram seus filhos ou filhas em vida o fizeram apenas depois da morte.


Para Franciane Souza, que perdeu o filho mais velho, Guilherme, no ano passado, a poucas ruas de casa, falar sobre a sua dor pode ajudar outras pessoas: “A gente tem que contar a história, a gente não pode fechar os olhos. O povo fala que o gay tem problema, que é doente. Doente é quem faz isso. Matar a pessoa só pelo fato de ser homossexual… Matar alguém por não ser do jeito que alguém quer que seja”.


Franciane, como tantas outras, não teve a oportunidade de ver Guilherme se tornar um adulto, trabalhar, construir uma família, envelhecer ou pensar em ter filhos. “Agora você imagina, criar um filho por 21 anos, cuidar, dar comida, banho e hoje o que eu tenho em casa é uma certidão de óbito, só isso: um papel. Depois do trabalho todo, você tá em casa e recebe a notícia. A polícia chega na sua porta falando que acharam um corpo. A gente como mãe não quer acreditar”, diz.


Liberdade religiosa, sexualidade e morte


Histórias como a de Franciane ainda não são devidamente registradas pelas autoridades. Só existem dados sobre a morte de pessoas LGBTQIA+ por preconceito no Brasil graças ao trabalho árduo de organizações independentes como a Associação Nacional de Transexuais e Travestis (ANTRA) e o Grupo Gay da Bahia, que produzem relatórios anuais de assassinatos.


As informações são levantadas a partir de análises de reportagens, relatos de outras organizações de defesa dos direitos desse grupo minoritário e pesquisas em delegacias. Isso significa que os números podem ser muito maiores. Para esses grupos, a subnotificação também é uma forma de preconceito.


“Não acessar informações dos movimentos sociais a fim de gerar tais dados, tampouco se preocupar em levantá-los, é a maior demonstração de descaso com a nossa população, especialmente quando diversos órgãos abrem mão de incluir pessoas trans em seus levantamentos, como o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), onde não constam informações sobre identidade de gênero dos atendimentos, ou mesmo no Dossiê Mulher e nos relatórios do Disque 100 - exemplos de publicações que lançam dados anualmente, sem se preocupar com um recorte que inclua e visibilize a violência contra a nossa população, apesar dos dados constantemente denunciados pelas organizações”, declara o Dossiê dos assassinatos e da violência contra pessoas Trans em 2020, da ANTRA. Nesse contexto, muitos crimes com motivações de intolerância acabam sendo registrados oficialmente apenas como homicídio.


Foi apenas em 2019 que o Supremo Tribunal Federal (STF) criminalizou a homofobia e a transfobia no país, enquadrando agressões contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais como racismo, com pena de até três anos e multa, até que o Congresso Nacional aprove uma norma específica. Sendo assim, fica proibido incitar ou disseminar o preconceito, isto é, realizar discurso de ódio.

A decisão, apesar de ser considerada um avanço na luta contra a violência, foi questionada pela Advocacia Geral da União por motivos religiosos. O advogado-geral da União, José Levy, pediu que o Supremo deixe claro quais atos podem e não podem ser considerados homofobia, citando a “liberdade religiosa, divulgação de modos de exercício da sexualidade” e acesso a espaços públicos, como banheiros e transportes.


“A proteção dos cidadãos identificados com o grupo LGBTI+ não pode criminalizar a divulgação - em meios acadêmicos, midiáticos ou profissionais - de toda e qualquer ponderação acerca dos modos de exercício da sexualidade sem receio de que tais manifestações sejam entendidas como incitação à discriminação”, disse ele no documento enviado ao STF. Atualmente, não é crime dizer em templo religioso, em caráter de crença, que se é contra a população LGBTQIA+.


Em meio dos retrocessos, que encontram eco inclusive nas falas preconceituosas do Presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) desde muito antes da campanha eleitoral de 2018, a luta de pessoas LGBTQIA+ continua. Da sua maneira, mães que sentiram na pele o peso do preconceito seguem na batalha pelo fim do preconceito.


Mulheres de diferentes lugares do Brasil agora lutam para dar voz aos filhos que foram silenciados. Essas são as suas histórias:























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